Citamos
Expresso
O simpósio em Jackson Hole nos EUA, que terminou este sábado, revelou uma vez mais as limitações dos estímulos lançados pelos bancos centrais. O professor português Ricardo Reis disse que o QE já não influencia a inflação. Carlos Costa ouviu. Um dos problemas a uma saída deste beco é a Alemanha
Os bancos centrais das economias mais desenvolvidas começam a dar mostras de que a política monetária – além de sobrecarregada. como o têm repetido, em virtude do absentismo ou pouca comparência da política orçamental nos estímulos à retoma – está a dar claros sinais de cansaço.
Os ecos desse aviso vieram esta sexta-feira e sábado dos Estados Unidos e foram ouvidos, entre outros, no local, por Carlos Costa, governador do Banco de Portugal.
Apesar da cautela nas palavras, e de um discurso recheado de complexas explicações técnicas, por mais surpreendente que possa parecer, foi Janet Yellen, a mais poderosa banqueira central do mundo, que revelou alguns impasses em que se encontra, hoje, a política monetária das economias desenvolvidas.
O simpósio de politica monetária realizado na sexta feira e no sábado em Jackson Hole é tido como o ‘Davos’ dos banqueiros centrais de todo o mundo que em agosto se deslocam a esta estância de turismo de montanha para debater informalmente os problemas da sua área com a ajuda de vários académicos.
Carlos Costa entre os ouvintes
Este ano não veio o italiano Mario Draghi, o presidente do Banco Central Europeu (BCE), nem o canadiano Marc Carney que governa o Banco de Inglaterra (BoE), mas esteve Yellen, a presidente da Reserva Federal norte-americana (Fed), que era indiscutivelmente a ‘estrela’ do evento, e o japonês Haruhiko Kuroda, o governador do Banco do Japão, que tudo indica vai avançar ainda mais agressivamente no seu programa de alívio quantitativo e qualitativo, de estímulos monetários, na próxima reunião de 20 e 21 de setembro.
Ben Bernanke, o antecessor de Yellen, esteve também presente e da lista de presenças consta Carlos Costas, governador do Banco de Portugal, num conjunto de governadores de bancos centrais de países da União Europeia. Da Comissão Europeia esteve Marco Buti. Xiangyan Song, representante do Banco Popular da China, também marcou presença no simpósio.
Os analistas concentraram-se nos sinais dados por Yellen em relação a uma nova subida pela Fed das taxas de juro, e à sua já célebre frase de que o “caso para uma subida se fortaleceu nos meses recentes”, e relegaram para segundo plano o resto do seu discurso.
Ora, no resto da sua intervenção de abertura do simpósio, a economista disse aos presentes que acha que tem as ferramentas necessárias no seu arsenal e que não se vai meter em aventuras como aquelas por onde já anda o Japão e a Zona Euro, mas revelou os becos da política monetária norte-americana no caso de novos choques financeiros e económicos regressarem.
E se a taxa diretora no futuro não for para além de 2% ou 3%?
Um dos impasses futuros, revelado pela banqueira central, tem a ver com o nível de taxa diretora de juros expetável no futuro e com a margem de manobra para a descer significativamente em caso de resposta a um choque financeiro e económico.
A presidente da Fed admitiu que a taxa diretora de juros poderá não ultrapassar o limiar dos 3% no longo prazo; o que contrasta com uma média de 7% entre 1965 e 2000 e com os níveis em que estava antes do eclodir da grande crise financeira de 2008. Recorde-se que em julho de 2007 a taxa de juros efetiva da Fed estava em 5,26% e que em dezembro desse ano a taxa nominal diretora estava fixada em 4,25%. A crise viria a exigir uma série de descidas sucessivas dessa taxa até que, em dezembro de 2008, a Fed a fixou em mínimos no intervalo de 0% a 0,25% (e assim ficou até dezembro de 2015). No conjunto, uma queda acumulada de 4 pontos percentuais em 12 meses.
Ora, com um horizonte de 3% para o futuro, a banqueira central concluiu: “Por isso, prevemos ter menos margem para cortes da taxa de juros do que tivemos historicamente”. O que significa recorrer mais aos instrumentos não convencionais que Ben Bernanke, o anterior presidente da Fed, colocou no terreno na resposta à crise financeira. Mas Yellen não se ficou por aquele alerta. Citando um estudo de David Reifschneider, da equipa técnica da Fed, o patamar de longo prazo pode estar em 2% e não em 3%, o que significa que o banco central teria de levar as medidas não convencionais até “extremos” em caso de resposta a um choque.
Por medidas não convencionais entende aquelas que já tem, não as “ferramentas adicionais” que outros bancos centrais já utilizam (como o BoJ, o BCE, o Banco Nacional da Suíça e o Riksbank, o Banco central da Suécia, quanto às taxas negativas de remuneração dos depósitos dos bancos) ou que andam a ser discutidas nos bastidores (tais como ampliar a compra de ativos até às obrigações municipais nos EUA, ou o chamado dinheiro de helicóptero, ou subir a meta de inflação para cima dos 2%). A Fed “não está a considerar ativamente essas ferramentas e enquadramentos adicionais, ainda que sejam assuntos importantes para investigação”, concluiu Yellen.
Ora, na mesma sessão, o académico Marvin Goodfriend defendeu a eficácia das taxas de juro negativas. Este professor da Universidade de Carnegie Mellon desde 1999 que defende o seu uso. E a economista Marianne Nessén, do banco central sueco, veio a Jackson Hole fundamentar a sua necessidade apontando para o declínio secular da chamada taxa real ‘natural’ de juros que está em terreno negativo na Zona Euro e muito perto de 0% nos EUA, segundo uma investigação de técnicos da própria Fed.
QE já deu o que tinha a dar, diz académico português
No sábado, um académico português veio dizer que os programas de estímulos monetários quantitativos – designados tecnicamente por quantitative easing, ou QE no acrónimo – já não têm impacto na inflação e que é preciso inovar radicalmente.
Ricardo Reis, professor na London School of Economics e na Universidade de Columbia em Nova Iorque, agitou as águas. Ele já esteve algumas vezes neste encontro anual e, desta vez, como referiu ao Expresso, pretendeu “empurrar a discussão para as metas de inflação e para o papel das reservas que os bancos têm no banco central”. Recordou que, depois de várias rondas de QE nos EUA e na Zona Euro, a inflação continua baixa, bem longe da meta e que o mercado para as reservas ficou saturado nos EUA.
No caso de um choque, ele não acha que mais do mesmo funcione. Equacionou em Jackson Hole dois extremos de intervenção: o banco central mantém o nível de reservas que tem, com dívida pública de curto prazo como principal ativo, e avança para medidas inovadoras como reservas com pagamentos indexados ao nível de preços e com maturidades mais longas do que um dia, ou recorre à ‘bomba atómica’, o dinheiro de helicóptero, que ele desaconselha, pelos efeitos inflacionários que possa ter, difíceis de prever.
O aviso de um influente diretor do BCE
Mesmo a receita de taxas negativas com QE deixa o BCE apreensivo, como veio lembrar o francês Benoît Coueré, influente membro da direção executiva do banco liderado por Mario Draghi. Ele recordou que tais medidas não convencionais foram tomadas na zona euro na pressuposição que eram transitórias e que “outras políticas económicas” (leia-se as dos governos e as iniciativas que a Comissão Europeia pode tomar) viessem desempenhar o seu papel no impulso da fraca retoma.
Coeuré até admite que vivemos numa era em que tais medidas não ortodoxas “tenham de ser usadas mais frequentemente”. Mas tudo tem um limite, pois geram “complicações”. No entanto, finalizou a sua intervenção dizendo que “se os outros atores não adotam as medidas necessárias nos seus domínios de políticas, talvez tenhamos [BCE] de mergulhar mais fundo no nosso enquadramento operacional e na nossa estratégia para o fazer”.
Quem não está com grandes hesitações é aparentemente o Banco do Japão. O governador Kuroda disse, recentemente, ao jornal Sankei que havia a “possibilidade” do BoJ avançar com mais estímulos na sua próxima reunião a 20 e 21 de setembro. Em Jackson Hole sublinhou: “Não há dúvida que temos um amplo espaço para avançar com mais alívio adicional em cada uma das três dimensões [da política monetária]: aquisição de ativos, orientação futura, e taxas de juro”. Não recordou aos presentes, mas convém lembrar que o BoJ e o Governo nipónico falam de uma ação concertada, de uma sinergia entre a política orçamental e a monetária. Uma coordenação que também se começa a desenhar entre o Banco de Inglaterra e o novo governo britânico chefiado por Theresa May.
O ‘entesouramento da liquidez’
Que a política monetária tem limitações é hoje uma conclusão repetida por muitos banqueiros centrais e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
As evidências estão à vista – inflação continua baixa (em julho, -0,4% no Japão; 0,2% na zona euro; 0,6% no Reino Unido; e 0,8% nos EUA), as reservas para além dos limites obrigatórios nos bancos centrais continuam elevadas (multiplicaram por 1000 entre 2008 e 2015 nos EUA) e os bancos não estão a funcionar como canais de transmissão efetivos da política monetária para a economia real, como veio lembrar a académica Laura Veldkamp, da Stern School of Business, da Universidade de Nova Iorque.
Ela veio comentar a intervenção de Ricardo Reis e colocou o dedo na ferida. A política monetária não está a funcionar porque há um problema clássico de “entesouramento de liquidez” por “toda a gente”. Não são só os bancos, são também as empresas, as famílias, sobretudo as com riqueza disponível, e o sector financeiro não bancário. Todos entesouram dinheiro ou correm a ativos tidos como seguros mesmo aceitando ter perdas com eles, pagando para os deter como acontece com muitas obrigações de dívida publica que têm taxas de remuneração negativas (na zona euro, na Suíça, no Japão), ou parqueando as reservas bancárias ou as poupanças auferindo juros nominais ou reais negativos.
O que domina transversalmente este comportamento é o ‘sentimento’ de “precaução, incerteza e medo”, diz a académica. A razão dele predominar é simples: os agentes económicos perceberam que a falência sistémica do sistema financeiro é mesmo possível. Viveram-na em 2008. E ainda não se esqueceram. “Bancos, empresas e investidores, todos temem outro colapso financeiro e tentam proteger-se mantendo ativos líquidos e sem risco”, conclui.
O problema Alemanha
Para sair deste beco tem de se deixar de ‘sobrecarregar’ a política monetária.
Uma das resistências é a Alemanha, ainda que não tenha sido falada em Jackson Hole, mas esteve presente no final da semana na atenção dos analistas quando Brad Setser, diretor do Centro de Geoeconomia do think tank norte-americano Council on Foreign Relations, chamou a atenção que o governo federal alemão registou um excedente orçamental de 1,2% do PIB no primeiro semestre do ano. O FMI previa um excedente de apenas 0,3% no final do ano, recomendando uma expansão orçamental em 2016 por parte do governo alemão.
A política orçamental do governo da chanceler Angela Merkel e do seu ministro das Finanças Wolfgang Schäuble, impede a Alemanha de desempenhar o papel que era necessário nesta retoma fraca, o de puxar pela zona euro. Uma crítica violenta veio do economista Paul Krugman na sua coluna no The New York Times. “A obsessão orçamental alemã gera uma espécie de efeito multiplicador na Europa, e indiretamente no mundo, que é desproporcional até em relação à dimensão económica da Alemanha”, refere o Prémio Nobel de Economia. E as “circunstâncias deram a esta obsessão alemã muito mais impacto do que as más ideias usualmente têm”. Naturalmente, impacto negativo.