BES. Contas suspeitas desde 2000

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Sol

Pierre André Butty. É este o nome do homem que passou mais ou menos despercebido na análise da derrocada do BES e do Grupo Espírito Santo (GES), apesar de ter sido o que mais estragos causou a Ricardo Salgado. O funcionário suíço da sucursal de Lausanne da Espírito Santo Services (ES Services) já esteve em Portugal a entregar documentos e a prestar declarações no Banco de Portugal (BdP). Se o seu nome não entrasse nesta história, Salgado nunca teria deixado provas escritas de que ordenou durante anos a falsificação das contas da Espírito Santo International (ESI), a holding que acumulou  uma dívida de 1.300 milhões de euros e que fez colapsar o GES.

Na acusação do BdP a 15 gestores do BES, a que o SOL teve acesso, o supervisor bancário acusa Salgado de manipulação das contas da empresa a partir de 2008, por uma questão processual. Mas um pedido de Pierre Butty junto ao processo levanta a suspeita de que as ilegalidades são mais antigas: exigiu documentos atestando que tudo o que fez desde o ano 2000 tinha sido por ordem do então presidente do BES. Foi o suficiente para se transformar numa testemunha-chave do caso.

Carta de responsabilização  
 
Butty era o homem que trabalhava na sombra de Francisco Machado da Cruz, o commissaire aux comptes da ESI, que denunciou na comissão parlamentar de inquérito os esquemas montados para esconder a verdadeira situação da holding. O suíço era um dos cinco funcionários da ES Services, sociedade anónima luxemburguesa que integrava o GES e prestava serviços administrativos e de contabilidade a diversas empresas do grupo, como a ESI ou a Espírito Santo Control.  
 
Segundo a acusação do BdP, a rotina instalou-se ao longo dos anos: em Janeiro, Butty entregava a Machado da Cruz as contas verdadeiras do ano anterior e recebia de volta, em Março, anotações de Salgado sobre o que deveria alterar na contabilidade da empresa.  
 
Em 2011, Butty começou a bater o pé, mas Machado da Cruz ter-lhe-á dito que tinha de continuar a seguir as ordens, que eram dadas por Salgado ou por José Castella, o director da ESI. Em Novembro de 2013, depois de o BdP ter começado a pedir informações sobre a ESI, Butty resolveu tomar cautelas maiores: recusou continuar «a falsear os registos contabilísticos da ESI com base em meras instruções orais» e pediu a Salgado uma declaração escrita que comprovasse que todos os actos da ES Services tinham sido executados em resposta às suas ordens. O pedido obrigava a que a declaração tivesse efeitos retroactivos a Janeiro de 2000.  
 
Salgado e José Manuel Espírito Santo assinaram então, em representação da ESI, um documento a reconhecer que os trabalhadores da ES Services agiram apenas no cumprimento de instruções da empresa, «nunca tendo comprometido aquela sociedade, por acção ou omissão, para além das instruções recebidas e das disposições do contrato».  
 
Em Novembro de 2013, enquanto o BdP insistia em perceber «o inusitado acréscimo» do passivo da holding, Salgado dava indicações para que tal fosse compensado com a inscrição de dois activos, localizados em Angola. Não havia «qualquer documentação» que atestasse a «existência, titularidade e valorização» daqueles activos. Ainda assim, Salgado deu ordens a Castella e a Machado da Cruz para que Butty os registasse.  

Como nem havia comprovativos de que aqueles activos existiam, Butty fez uma nova exigência: a ordem tinha de lhe ser dada por escrito. E Salgado voltou a cumprir a instrução.  
 
Contabilista avisou  
 
O documento do BdP – que acusa 15 gestores do BES de gestão ruinosa ou de prestação de falsas informações, com dolo – deixa expresso que Machado da Cruz teve várias conversas com Manuel Fernando Espírito Santo, a partir do primeiro semestre de 2012, sobre a sua preocupação com a manipulação das contas da ESI e o nível de endividamento de algumas holdings do GES. O chairman da Rioforte, porém, nada fez. Por outro lado, em Abril de 2013, Machado da Cruz transmitiu a mesma preocupação, «em diferentes momentos», a José Manuel e a Ricardo Abecassis Espírito Santo. Ambos sugeriram que o commissaire aux comptes deveria explicá-la no Conselho Superior – o órgão que reunia os cinco principais ramos da família. Segundo o BdP, nada fizeram, pelo menos até ser conhecida a ocultação da dívida da holding. Apesar de os Espírito Santo terem repetido que ninguém da família tinha ficado com um cêntimo do grupo, a acusação não deixa margem para dúvidas: no ano de 2011, Salgado pediu alterações nas contas da ESI que permitiram gerar os resultados necessários para atribuir dividendos extraordinários à família de cerca de 18 milhões. Em Dezembro de 2013, a verdadeira situação da ESI era esta: dívida de 1.300 milhões e capitais próprios negativos de mais de três mil milhões de euros. Ou seja, mesmo que a holding pagasse toda a sua dívida e vendesse todos os seus activos, já estaria falida. Isso não impediu que o BES desenvolvesse estratégias para comercializar dívida da ESI junto dos seus clientes. O rating da sociedade só começou a ser feito a pedido da KPMG suíça, devido à crescente exposição dos clientes do Banque Privée, e mesmo esse ter-se-á baseado em informações financeiras que não reflectiam a verdade contabilística. Além de gestão ruinosa e de prestação de falsas informações ao supervisor, Salgado e José Manuel Espírito Santo são ainda acusados de violarem as regras sobre conflito de interesses: não poderiam tomar decisões sobre comercialização de dívida da ESI porque eram accionistas indirectos daquela holding. Ricardo Abecassis e Manuel Fernando enfrentam uma acusação por actos dolosos de gestão ruinosa por, na qualidade de administradores do BES, terem permitido a comercialização de dívida de uma empresa falida. José Maria Ricciardi também não escapa, mas por algo menor: ter permitido que não existisse qualquer sistema de controlo interno ou de avaliação de risco no BES.  
 
Salgado ainda não é arguido  

Ricardo Salgado ainda não é arguido nos processos-crime do chamado ‘Universo Espírito Santo’, confirmou o SOL A dúvida agudizou-se com o segundo arresto preventivo, que levou a Justiça a apreender os bens móveis (carros, mobílias ou obras de arte) de Salgado, José Manuel Espírito Santo e Amílcar Morais Pires. Mais ninguém foi visado na operação. Há especialistas que defendem que o arresto preventivo é uma medida de garantia patrimonial e, como tal, à semelhança das medidas de coacção, exige prévia constituição de arguido. Mas os investigadores do caso BES/GES têm outro entendimento. Sobre a acusação do BdP, os arguidos têm 30 dias para apresentar defesa. S.C.

 

 

 

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