Não sabemos se estes casos são representativos da cultura de risco prevalecente na CGD e noutros bancos portugueses, à época. A avaliar pelas respostas ao nosso questionário e pelas entrevistas que realizámos é possível que sim. Ao conceder empréstimos em condições especulativas e Ponzi, a CGD contribuiu para a fragilizar a estrutura financeira do país, à luz de Minsky.
Mais uma vez foi um choque externo que abalou o edifício e o fez ruir. Mas o edifício, desta vez, nem alicerces tinha. Talvez tivesse testosterona a mais e diversidade a menos.
Resultados de um inquérito
Com o objectivo de ajudar a caracterizar a cultura de risco na banca em Portugal, foram realizadas entrevistas a profissionais de gestão do risco que trabalham, ou trabalharam a diversos níveis da hierarquia interna, nos principais bancos em Portugal. As entrevistas foram feitas com o suporte dum questionário uniforme, largamente baseado num inquérito internacional do Financial Stability Board que é do domínio público, mas onde infelizmente não foram incluídos quaisquer bancos de Portugal.
As respostas revelam muitas semelhanças na gestão societária que existia antes, durante, e após a crise financeira de 2007‑2009, nos diversos bancos em Portugal que, sem surpresa, estão por sua vez alinhadas com a evidência realçada no inquérito internacional acima referido.
As respostas permitem tirar algumas conclusões sobre o papel das falhas de governo societário e gestão do risco na banca em Portugal. Estas entrevistas, não tendo sido exaustivas, poderão e deverão ser melhorados em trabalho futuro.
Em paralelo, realizámos algumas entrevistas a supervisores que trabalharam no supervisor bancário, a fim de recolher uma perspectiva complementar sobre a cultura de risco das instituições bancárias portuguesas e sobre as eventuais falhas de supervisão bancária nos anos recentes.
O FSB, na sua revisão temática sobre a gestão do risco nos bancos internacionais (FSB, 2013) salienta o facto de as instituições financeiras não terem compreendido os riscos que estavam a assumir devido à fraqueza do governo societário. Pensamos que o mesmo terá acontecido nos bancos em Portugal e na própria supervisão bancária. Muitos conselhos de gestão das instituições financeiras incluíam indivíduos com pouca experiência na indústria financeira e com uma compreensão limitada da complexidade crescente das organizações de que eram responsáveis. Muitas vezes os directores dos bancos não dedicavam o tempo necessário para compreender o modelo de negócios do banco e os que se esforçavam por fazê‑lo ainda que condicionados por poderes limitados, esbarravam frequentemente com a indiferença dos outros directores e também externa (auditores e supervisores).
Era comum os conselhos de gestão não dedicarem atenção à gestão do risco, ou esforçarem‑se minimamente por introduzir uma estrutura efectiva tal como comités de risco, que facilitassem a análise da exposição do banco e questionassem construtivamente as propostas do conselho de gestão e as suas decisões. Ausente o contrabalanço de poderes, floresceu nas instituições financeiras uma cultura de risco excessivo e alavancagem crescente afectando toda a organização.
As entrevistas realizadas confirmam a ausência de uma verdadeira cultura de risco nos bancos em Portugal no período que antecedeu a grande crise financeira. Não havia modelos de risco com base empírica, muitas vezes nem sequer havia dados, os comités de risco eram pobres e os reportes internos medíocres; a integração da análise do risco nos processos de decisão era muito limitada ou nula.
A situação começou a melhorar com o aproximar de Basileia II (2007‑08) e sobretudo a partir de 2011. Contudo, equipas de modelização de risco, que foram criadas nalguns bancos logo no início do século xxi, foram confrontadas com indiferença ou, mesmo, marginalização interna e “ficavam a um canto a fazer modelos” com escassa relevância para a vida interna do banco.
Tópicos abordados, perguntas e respostas mais frequentes
Gestão executiva; Reuniões do conselho executivo
Evidência sobre debate interno e avaliação crítica de propostas alternativas?
- Concentração de poderes e decisões
- Debates não ficam registados em acta
Cooperação entre o conselho executivo e as funções horizontais de auditoria e gestão do risco?
- Ausência de comités de risco e auditoria nalguns casos
- Gestão de risco sem autonomia até 2005
Gestão não‑executiva; Reuniões do conselho de supervisão
Caso haja acumulação de funções, há: Justificação interna? Aprovação do supervisor? Procedimentos para mitigar os riscos da acumulação de funções?
Garante recursos para as funções de auditoria e gestão do risco?
- Mínimos até Basileia II
- Basileia II constituiu uma boa ocasião para realçar a importância da gestão do risco
Membros do conselho executivo
Conhecimento, experiência, independência, acesso a informação e influência?
- Pouco conhecimento e interesse em gestão do risco
- Desconhecimento das metodologias
- Incapacidade para apreciar os assuntos a fundo
Conflitos de interesse adequadamente avaliados e geridos?
Políticas de treino, sucessão, e manutenção da capacidade colectiva dos órgãos de gestão?
Envolvimento dos directores nas discussões? Abertura para discussão de pontos de vista alternativos? Directores têm informação e recursos para desempenhar as suas funções e apresentar pontos de vista alternativos ao conselho de gestão?
- Concentração de poderes e decisões
- Pouca abertura e risco de represálias
Área comercial (centros de negócios)
Gestores comerciais têm responsabilidades na gestão do risco tendo em conta o “apetite” da instituição?
Monitoração activa dos limites de risco? Com que frequência?
Auditoria interna
Autonomia, autoridade? Recursos, posição hierárquica e funcional?
- Sem envolvimento nas questões de risco até muito recentemente
Função de gestão do risco “CRO”: Director de gestão do risco
Recursos, posição hierárquica e funcional? Independência? Ligação às áreas operacionais?
- Muito reduzido até Basileia II
- Não havia pelouro de risco com reporte único
- Modelos avançados internos de risco (A‑IRB) entendidos num sentido muito restrito (apenas para cálculo de rácios de capital)
- Neste sentido as estruturas internas associadas aos A‑IRB não passavam o teste de utilização (seu uso no dia‑a‑dia para a gestão do risco e para a concessão dos créditos, definição de margens, apetite pelo risco, etc.)
- Risco de taxa de juro e de liquidez sob responsabilidade da área finan ceira (CFO em vez de CRO), isto é, total ausência de independência na gestão destes riscos
Experiência do “CRO”? Posição hierárquica e funcional? Influência?
- Em geral profissionais com graus académicos adequados e experiência profissional na banca comercial
- Posição hierárquica muitas vezes abaixo de director
- Resistências internas à transferência de responsabilidades e recursos humanos na gestão de riscos das áreas de negócios (particulares, empresas, liquidez, etc.) para a função emergente de gestão de risco
Reporte directo ao conselho de direcção? Acesso aos directores não‑executivos? Adequação da função revista regularmente pelo conselho de gestão?
- Não
- Mais em função de relações pessoais (lealdade) do que funcionais
- Fiscalização exercida pelo Conselho Fiscal
Auditoria independente da função de gestão do risco cobrindo entre outros procedimentos, controlos internos, qualidade de reporte, medidas de atenuação do risco?
- Auditoria sem conhecimentos de risco
Aprovação pelo conselho de gestão não‑executiva (supervisão) das estratégias de negócios, políticas de atenuação do risco, estrutura de definição da tolerância/apetite pelo risco, plano de capital e sua afectação interna?
Declaração sobre a tolerância/apetite pelo risco
Declaração de apetite pelo risco? Permite transposição em limites de exposição para as áreas comerciais? Limites individuais podem ser quantificados para obter uma medida agregada do perfil de risco? Permite comparação entre apetitede risco e capacidade para assumir riscos?
Limites de risco
Limites de exposição consistentes com apetite pelo risco? Violação dos limites analisada nas suas implicações sobre todas as partes envolvidas?
- Risco de crédito avaliado por peritos
- Limites sem ligação com risco
- Ausência de limites à exposição ao risco de soberano (em euros)
- Desvios dos limites com aprovação superior
CRO reporta prontamente ao conselho de gestão executiva as violações dos limites de risco?
Prestação de contas
Existem processos de agravamento quando haja desvios dos limites? Quais as consequências? Os empregados estão informados desses processos? O ambiente é considerado aberto e justo permitindo desafio crítico das decisões?
Existem procedimentos de denúncia em suporte da gestão do risco? Que protecção dos denunciantes (em papel e na prática)?
Comunicação
Existem mecanismos que garantam a expressão de pontos de vista alternativos aos diversos níveis de gestão? Faz‑se regularmente um balanço da efectividade desses mecanismos? De que forma é que
esses mecanismos afectam o dia‑a‑dia da gestão?
São tiradas lições dos sucessos e erros passados? Como são comunicadas dentro da organização? Como influenciam a cultura da organização?
Infra-estrutura de gestão de risco
Existem sistemas e equipamentos informáticos adequados para a gestão do risco? Permitem que os gestores tenham acesso atempado à informação? Está estruturada para a identificação e acompanhamento dos riscos?
- Soluções informáticas para Basileia II (SAS) mas só a partir de 2007‑08
- Tipo caixa negra desenvolvidos por consultores
- Modelos sem base empírica sólida
- Nalguns casos modelos sem ligação a limites ou política de preços (falham o teste de uso)
- Soluções adquiridas no mercado (S&P, Moody´s, etc.) problemáticas com PDs iguais para todos os bancos e sem base empírica sólida; algumas soluções permitem o seu desenvolvimento interno
Existe uma estratégia para melhorar e manter os sistemas e equipamentos informáticos actualizados?
- Recurso a soluções de mercado e consultores
- Mais recentemente, nos últimos três anos, a situação melhorou bastante nalguns bancos
Agregação de dados
Existe capacidade para agregar todos os dados relevantes sobre a exposição ao risco? Existe capacidade para identificar concentração de risco e riscos emergentes? Qual a rapidez e qualidade de reporte?
A qualidade dos dados e seu tratamento melhorou a partir de 2007‑08 com Basileia II
Problemas com ligação entre sistemas
Problemas com a definição de incumprimento: as bases de dados sobre reestruturação de créditos a cargo exclusivo das áreas comerciais
Reporte
Existem reportes de gestão de risco? Qual a audiência? São fáceis de compreender e orientados para a tomada de decisão?
- Motivados pelos requisitos regulamentares
- Para diálogo com o supervisor
- Mensais e trimestrais
Com que frequência são produzidos e distribuídos aos gestores? É suficiente para identificar os riscos emergentes permitindo a sua atenuação, quando e se for necessário?
- Motivados pelos requisitos regulamentares
- Para diálogo com o supervisor
- Alguns casos de reporte interno independente de pressão regulatória
Banca portuguesa impreparada para a mudança de regime
Como se indicou no início, a adopção do Euro, em 1999, a redução significativa ou mesmo eliminação do risco cambial terá gerado a ideia de que a actividade bancária em Portugal já não teria riscos importantes para gerir. Adoptou‑se um modelo de empréstimos concedidos a taxa de juro variável com margem financeira fixa baseando‑se os ganhos em grandes volumes (pela quantidade e descurando a qualidade) com margens estreitas, o que era facilitado pela enorme disponibilidade de fundos nos mercados internacionais.
As entrevistas sugerem que a banca em Portugal não estava preparada para a “mudança de regime” que constituiu as privatizações, a moeda única, e a liberalização financeira. E muito menos para o
choque pós‑grande crise financeira e o subsequente programa de ajustamento financeiro e intervenção da chamada “Troika”. Beneficiando de algumas décadas de liquidez generosa e lucros
fáceis (derivados da quantidade de crédito concedido), e habituados a uma supervisão muito pouco intrusiva, os banqueiros portugueses alimentaram uma cultura societária que vinha do passado distante (Estado Novo) e recente (bancos nacionalizados), onde preocupações sobre o risco estavam ausentes, e as influências pessoais (e políticas) predominavam, com um estilo de gestão autoritário, sem tolerar disputas internas.
Fica‑se com a impressão de que o modelo de negócios estava largamente assente na apropriação/extracção de recursos para ganho “pessoal”, familiar, ou de grupo (incluindo político), negligenciando a eficiência económica dos créditos concedidos e sem qualquer preocupação pela qualidade da moeda que se ia criando (alavancagem do sistema bancário e risco de qualidade).