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Novo Banco. Componente do pedido de capital em avaliação externa, diz Centeno

Segunda-feira, Junho 21st, 2021

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RTP

O governador do Banco de Portugal (BdP), Mário Centeno, afirmou hoje que está a ser feita uma avaliação externa sobre uma componente do pedido de capital formulado pelo Novo Banco.

“À situação concreta que coloca está a ser, do ponto de vista do Fundo de Resolução, a ser dada resposta. Foi pedida uma avaliação externa em relação a uma determinada componente do pedido de capital do Novo Banco”, referiu Mário Centeno, em resposta a uma questão sobre o facto de o Novo Banco ter anunciado a obtenção de uma providência cautelar para receber 112 milhões de euros do Fundo de Resolução, depois de esta entidade ter transferido 317 milhões de euros.

Falando na conferência de imprensa de apresentação do Boletim Económico de junho, em Lisboa, Mário Centeno disse ainda que se está “a proceder a essa avaliação”. “E estamos em crer que ela resolverá, de uma forma ou de outra, o que vier a ser a opinião externa sobre essa injeção”, acrescentou.

Em 04 de junho, o Fundo de Resolução anunciou que pagou 317 milhões de euros ao Novo Banco, ao abrigo do Acordo de Capitalização Contingente (CCA), abaixo dos 598 milhões de euros que a instituição liderada por António Ramalho tinha pedido.

A estrutura liderada por Luís Máximo dos Santos considerou ser devido “um ajustamento no montante agregado de 169.298.939,00 euros” ao pedido do Novo Banco, devido a divergências acerca da venda da sucursal em Espanha (147,4 milhões de euros), à valorização de ativos (18 milhões) e aos prémios de gestão de 2019 e 2020 (quase quatro milhões de euros).

O valor totaliza 429 milhões de euros, e o pagamento dos 112 milhões de euros remanescentes fica “dependente da conclusão de uma averiguação suplementar” sobre a não aplicação da “política de contabilidade de cobertura aos instrumentos financeiros derivados contratados para cobrir risco de taxa de juro resultante da exposição a obrigações de dívida soberana de longo prazo”.

Em 07 de junho, o Novo Banco anunciou que irá tomar “todas as medidas”, incluindo “a obtenção de uma providência cautelar”, para receber 112 milhões de euros do Fundo de Resolução, depois de a entidade ter transferido 317 milhões de euros.

O Novo Banco foi criado em agosto de 2014 na resolução do Banco Espírito Santo (BES).

Em 2017, aquando da venda de 75% do banco à Lone Star, foi criado um mecanismo de capitalização contingente, pelo qual o Fundo de Resolução se comprometeu a, até 2026, cobrir perdas com ativos `tóxicos` com que o Novo Banco ficou do BES até 3.890 milhões de euros.

Até 2020, o Novo Banco já tinha consumido 2.976 milhões de euros de dinheiro público ao abrigo do mecanismo de capitalização, a que se somaram, entretanto, 317 milhões de euros.

Já no ano passado foi negociado um empréstimo dos bancos ao Fundo de Resolução, mas acabou por não avançar, tendo o dinheiro saído de um empréstimo do Tesouro.

 

Havia dificuldade em comunicar com área de conformidade do BESA

Domingo, Maio 30th, 2021

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RTP

Uma das diretoras de conformidade (`compliance`) do Novo Banco e BES, Paula Gramaça, disse hoje no parlamento que havia dificuldades de comunicação do banco português com o BES Angola, apesar de não haver recusa taxativa de partilha de informação.

“Os nossos colegas de Angola não estavam muito recetivos. Nunca dizendo que não, nunca diziam que não estavam disponíveis a implementar ou para dar informação, mas de facto havia sempre alguma coisa que impedia que a informação chegasse”, disse hoje Paula Gramaça no parlamento.

A responsável, que faz ainda parte do departamento de conformidade do Novo Banco, foi hoje ouvida na Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução.

“Isto acabava por não só ser nessa área de controlo interno, que é, no fundo, como é que o banco implementava as suas obrigações de conhecimento dos clientes, de análise das transações”, disse ainda aos deputados Paula Gramaça.

A antiga responsável do BES referiu ainda que “só mais tarde”, quando Rui Guerra entrou na administração do BESA, é que “há uma abertura”.

“O dr. Rui Guerra contratou um `compliance officer`, portanto, uma pessoa para as funções de `compliance` do BESA, que veio a Portugal”, tendo aí existido “uma tentativa de apreender” como eram os procedimentos na casa-mãe, que deveriam ser replicados em Angola.

A primeira de três audições agendadas para hoje contou apenas com perguntas dos deputados Duarte Alves (PCP), Eduardo Barroco de Melo (PS) e Mónica Quintela (PSD).

Questionada pela deputada social-democrata sobre quem, em Portugal, “é que sabia o que se estava a passar em Angola”, Paula Gramaça disse recordar-se que, “em termos da instituição”, O BESA reportava ao antigo presidente do BES Ricardo Salgado.

“Não quer dizer que tenha sido, durante este período sempre, porque houve uma altura em que o dr. Morais Pires ficou com o pelouro da área internacional”, referiu.

A exposição do BES ao BESA entre 2008 e 2014 passou de 1.700 para 3.300 milhões de euros, sendo correspondente a 47% dos fundos próprios do BES à data da resolução.

A exposição do BES ao BESA esteve coberta, até pouco depois da resolução do BES, por uma garantia soberana de Angola, assinada pelo Presidente da República de então, José Eduardo dos Santos, e cuja validade foi reiterada pelo ministro das Finanças, Armando Manuel, tendo depois sido revogada.

Banco de Portugal arrasa reestruturação da dívida de Vieira no Novo Banco

Quarta-feira, Maio 19th, 2021

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Eco

Banco de Portugal arrasa reestruturação da dívida de Vieira no Novo Banco

O Banco de Portugal defendeu, numa nota dos serviços consultada pelo ECO, que o plano do Novo Banco para as dívidas de Luís Filipe Vieira é “pouco realista” e tem “pouca aderência à realidade”.

Areestruturação da dívida do grupo de Luís Filipe Vieira no Novo Banco levantou muitas dúvidas ao Banco de Portugal em 2018. Ainda assim, a operação avançou sem a oposição do Fundo de Resolução porque, quando foi chamado a pronunciar-se, no âmbito do acordo de capital contingente negociado com a venda ao Lone Star, já o processo estava em curso (havia iniciado em 2016) e o banco tinha assumido compromissos com a Promovalor, pelo que existiam riscos de reputação e de indemnizações caso tivesse “chumbado” a operação. Para esclarecer as questões levantadas pelos serviços do Banco de Portugal, foi pedida uma auditoria independente a este acordo para avaliar os seus méritos e quais as perspetivas de recuperação das dívidas do presidente do BenficaEste trabalho está prestes a ser concluído pela BDO.

Entre outras falhas detetadas, os técnicos do Banco de Portugal concluíram que o plano de negócios do fundo de investimento alternativo especial (FIAE) que ficou com os créditos e ativos do grupo imobiliário de Vieira é “ambicioso e pouco realista” e com “pouca aderência à realidade”, nomeadamente no que diz respeito aos projetos a desenvolver no Brasil.

“O plano de negócios do FIAE afigura-se ambicioso e pouco realista, pressupondo novos financiamentos, não sendo seguro que o FIAE venha a ter condições para os obter (tanto quanto mais que o Novo Banco não se comprometeu a conceder esse financiamento, o que é positivo na perspetiva da manutenção da exposição do Novo Banco, mas concorre para a conclusão de que o plano de negócios do FIAE poderá não ser exequível)”, indicava uma nota informativa produzida pelos serviços do Banco de Portugal no dia 14 de novembro de 2018 e que o ECO consultou.

O que está previsto no plano de negócios? Que o fundo vai gerar receitas suficientes para o pagamento integral de todos os financiamentos concedidos pelo banco à Promovalor (mais de 200 milhões), incluindo os 160 milhões de euros dos chamados VMOC (Valores Mobiliários Obrigatoriamente Convertíveis).

Há um calendário e metas para o desempenho do fundo:

  • Ano 5: amortização de 60 milhões de euros de dívida bancária (algo que não vai ser cumprido, devido à pandemia, segundo Vieira);
  • Ano 10: amortização de 250 milhões de euros de dívida bancária e capital subscrito (valores acumulados);
  • Ano 25: amortização de 350 milhões de euros de dívida bancária e capital subscrito (valores acumulados).

Para o Banco de Portugal, é “pouco prudente” assumir que os VMOC vão ser reembolsadas tendo em conta os obstáculos que o plano de negócios vai ter pela frente. Até o Novo Banco tem o valor dos VMOC provisionados a 100% nas suas contas, o que é um indício de “falta de crença” no plano de negócios do FIAE, argumentou o supervisor.

As dúvidas quanto à execução do plano de negócios não ficam aqui. Um dos principais pressupostos do fundo passa pelo desenvolvimento dos projetos imobiliários, o que vai implicar mais financiamento bancário. Ora, “não se considera provável” – disse o Banco de Portugal — que outro banco queira financiar estas iniciativas tendo em conta que os ativos estão hipotecados ao Novo Banco. Nessa medida, terá de ser o Novo Banco a ter de financiar estes projetos sob pena de se perder “a margem de promoção imobiliária” incorporada no plano de negócios.

No âmbito desta reestruturação, foram transferidos créditos na ordem dos 134 milhões de euros do Novo Banco para o FIAE (em troca de 96% das unidades de participação do fundo), tendo sido ainda reestruturados pelo banco financiamentos existentes de 85,8 milhões de euros.

Por seu turno, foram integrados no fundo mais de duas dezenas ativos imobiliários localizados em Portugal Espanha, Brasil e Moçambique, negócios que Vieira acredita que vão pagar todas as dívidas junto do Novo Banco, incluindo os VMOC de 160 milhões. Mas muitos destes projetos ainda se encontram por desenvolver.

Além dos VMOC, também a dívida da Imosteps no valor de 54 milhões ficou de fora desta reestruturação. Esta dívida foi vendida no pacote Nata 2 ao fundo Davidson Kempner por 4 milhões, tendo sido adquirida, entretanto, pelo sócio de Vieira e dono da Valouro, José António dos Santos, numa transação que foi amplamente discutida no Parlamento.

15 milhões em comissões para a Capital Partners

Por outro lado, também a escolha da C2 Capital Partners mereceu observações duras por parte do supervisor: não houve um “processo competitivo e transparente” no processo de seleção da sociedade gestora do FIAE, o que seria o mais adequado tendo em conta a existência de relações de proximidade entre as duas partes.

O Banco de Portugal lembrou que havia “acionistas comuns” e “relações/interesses de índole comercial/profissional comuns” entre a Promovalor e a C2 Capital Partners. Designadamente, apontou o facto de Tiago Vieira, filho do presidente do Benfica, ter participações diretas em ambos os lados e ser também administrador da sociedade gestora, enquanto Nuno Gaioso Ribeiro, fundador da C2 Capital Partners, exercia também o cargo de vice-presidente do clube encarnado. Isso já não acontece atualmente.

Outro reparo deixado pelo Banco de Portugal: as comissões fixas que vão ser pagas à sociedade gestora de Nuno Gaioso Ribeiro podem ascender a 15 milhões de euros ao longo dos 25 anos de vida do fundo (600 mil euros por ano), não havendo um “alinhamento de incentivos” a que prossiga uma estratégia ativa para reembolsar as unidades de participação ao banco.

Também aqui Novo Banco defendeu-se junto do supervisor, argumentando que a remuneração da C2 Capital Criativo se encontra “em linha com a prática do mercado”. Já o Banco de Portugal notou que 600 mil euros de comissões por ano representa um aumento superior a 50% do volume de negócios da C2 Capital Criativo. Isto além da comissão variável em função dos reembolsos do FIAE.

Execução imediata daria perdas de 126 milhões

Apesar de todas as dúvidas quanto a este acordo entre o banco e a Promovalor, o Banco de Portugal reconhece que a alternativa à reestruturação produziria, “com elevada probabilidade”, um “pior resultado” para o Novo Banco, segundo os técnicos do supervisor. Esta ideia já tinha sido partilhada por Nuno Gaioso Ribeiro há poucos dias no Parlamento.

A nota informativa do Banco de Portugal apresenta os números desse cenário alternativo: “Com referência a 30 de setembro de 2018, considerando a exposição do Novo Banco à Promovalor e ao FIAE, o VVI [valor de venda imediata] dos ativos e os limites de dívida que os mesmos garantem, a execução de todas as hipotecas implicaria perdas mínimas de 126 milhões de euros”.

Contas feitas, o impacto no acordo de capital contingente superaria os 300 milhões de euros (a serem suportados pelo Fundo de Resolução), isto tendo em conta que o banco já tinha registado imparidades de 180 milhões de euros — sobretudo relacionadas com os tais 160 milhões das VMOC.

BDO prestes a concluir auditoria independente

Face às dúvidas levantadas, e tendo em conta que o Fundo de Resolução não podia dizer nem sim (pois tratava-se de um ato de gestão que compete ao banco e que não lhe cabe validar) nem não (pois poderia invalidar a operação com encargos que poderiam daí advir), os serviços do Banco de Portugal recomendaram “uma análise independente à operação de reestruturação e à obtenção de uma opinião sobre os seus méritos e sobre o plano de negócios do fundo e as expectativas de recuperabilidade” dos créditos da Promovalor.

É o que está prestes a ser concluído pela auditora BDO, segundo adiantou Luís Filipe Vieira esta segunda-feira. “A auditoria está a terminar”, disse. Será entregue a “breve trecho”, acrescentou o presidente do Novo Banco.

Novo Banco. Carlos Costa contraria administradores do BES quanto à capitalização pública

Quarta-feira, Maio 19th, 2021

Citamos

RTP

O ex-governador do Banco de Portugal (BdP), Carlos Costa, disse hoje que não garantiu que a capitalização pública do BES fosse efetivada, divergindo das palavras de antigos administradores do banco na comissão de inquérito ao Novo Banco.

“O que foi dito não é que tinha a linha de capitalização, é que existiam mecanismos de capitalização previstos, que são os que estão consagrados na lei, e naturalmente que as pessoas tinham que acionar esses mecanismos, não junto do Banco de Portugal, mas junto do Ministério das Finanças”, referiu hoje na comissão de inquérito ao Novo Banco.Respondendo ao deputado João Paulo Correia (PS) na Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução, Carlos Costa disse que o Governo, através das Finanças, era “o interlocutor para efeitos de recapitalização, como foi para o BPI, BCP e para os outros bancos”.

O deputado socialista lembrou que antigos administradores do BES e Novo Banco como Vítor Bento, João Moreira Rato e José Ramalho tinham dito que o governador do Banco de Portugal tinha assegurado essa linha de capitalização.

O ex-governador referiu que “qualquer um deles sabe que quem dispõe da linha não é o Banco de Portugal”, mas sim o Ministério das Finanças.

“Para que não haja confusões: uma coisa é dizer que há a linha, outra coisa é dizer que eu garanto que se utiliza a linha”, lembrando que, “na época, o dinheiro resultante ainda estava disponível, e a mobilização desse dinheiro tinha que ser feita de acordo com os mecanismos estabelecidos na lei”, disse Carlos Costa.

O antigo governador do BdP afirmou que “garantir a existência da disponibilidade da linha para recapitalização pressupõe preencher os requisitos para ter acesso à linha”.

Numa audição no dia 24 de março, José Honório disse que Carlos Costa lhe assegurou que teria lugar uma capitalização pública do banco caso houvesse problemas.

Perante a reticência de Honório em aceitar o cargo, de acordo com o antigo administrador do banco, o então governador do BdP disse para não estar “preocupado”.

“Aí temos a linha de recapitalização pública do banco”, disse Carlos Costa a José Honório, de acordo com o relato do último na comissão de inquérito ao Novo Banco.

No dia anterior, o antigo presidente do BES e Novo Banco Vítor Bento já tinha dito que ex-ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque, com quem só falou uma vez, não lhe mentiu e deixou claro a inexistência de vontade política para um apoio público ao banco.

Vítor Bento já tinha recordado que o BdP tinha dado “reiteradas garantias públicas que estava disponível a linha de capitalização pública”, não lhe passando “pela cabeça” que “não tivesse havido um acerto de posições prévia” com o Governo.

Banco de Portugal não foi o único a falhar no BES. Relatório secreto atira à CMVM, auditoras e Angola

Terça-feira, Maio 4th, 2021

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Banco de Portugal não foi o único a falhar no BES. Relatório secreto atira à CMVM, auditoras e Angola

O Relatório Costa Pinto não poupou críticas ao supervisor português. Mas outras entidades esconderam dados, atrasaram respostas ou falharam nos seus deveres. O regulador CMVM é especialmente visado.

O Banco de Portugal é o principal alvo das críticas, mas há alvos secundários na auditoria independente conduzida pela equipa liderada por João Costa Pinto à atuação no caso Banco Espírito Santo. O relatório, concluído em abril de 2015, que tinha sido encomendado pelo então governador Carlos Costa (e que ficou secreto até o Observador o divulgar esta semana), aponta falhas a outro supervisor importante, a CMVM, bem como a empresas de auditoria e, ainda, ao congénere do Banco de Portugal em Angola, o BNA.

Essas são outras entidades que tinham responsabilidades no controlo e fiscalização do Banco e do Grupo Espírito Santo – e que também tiveram falhas, aponta o relatório. O documento considera que estas prejudicaram algumas das medidas adotadas pelo supervisor bancário e há críticas fortes à atuação da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, na altura liderada por Carlos Tavares (hoje chairman do Banco Montepio).

No interação com a CMVM são duas as matérias analisadas: o aumento de capital realizado em maio de 2014 pelo Banco Espírito Santo e a comercialização pelo banco – junto de clientes de retalho – de produtos financeiros que serviram para financiar as empresas não financeiras do Grupo Espírito Santo, e que numa fase final foram concebidos e vendidos de forma a contornar as ordens de travão dadas a estas práticas de financiamento do grupo. É neste ponto que o relatório concluiu que houve uma “supervisão ineficaz”por parte do regulador da bolsa.

“Um dos piores negócios da história”

“Um dos piores negócios da história” dos mercados financeiros. A expressão foi usada pelo Financial Times dias depois da resolução para descrever o último aumento de capital do BES, em junho de 2014, e é reveladora do dano reputacional que Portugal sofreu com o colapso do GES/BES. A operação, fechada entre maio e junho, permitiu captar mais de mil milhões de euros, sob a direção de Ricardo Salgado, e foi considerada um sucesso na medida em que a procura excedeu a oferta.

As novas ações foram liquidadas em meados de junho, ou seja, foi nessa altura que os acionistas que as compraram debitaram das suas contas de investimento os euros necessários para concluir a transação. Um mês depois, perante as notícias sobre a falência iminente do Grupo Espírito Santo, tinham perdido quase todo o seu valor e acabaram a valer praticamente zero quando o banco foi alvo de resolução nos primeiros dias de agosto.

Na página 390 do relatório lê-se que “a informação ao dispor dos reguladores, nomeadamente do Banco de Portugal e da CMVM, no momento da emissão do prospeto do aumento de capital, perspetivava que o incumprimento da ESI não era um mero risco potencial, como indicado no prospeto. Nesta questão específica, não está em causa a atuação do Banco de Portugal, que cumpriu os deveres de cooperação com a CMVM“.

Não sendo uma crítica expressa, a frase pode ser lida como uma crítica ao supervisor do mercado que deu o selo de aprovação ao prospeto da operação no dia 20 de maio, no mesmo dia em que teve conhecimento da  auditoria final à Espírito Santo Internacional (ESI), que  confirmava o que o Banco de Portugal já sabia desde novembro do ano anterior.

A dívida da ESI, então a principal holding do GES, era mais do dobro do que estava nas contas e a KPMG aponta para uma subavaliação da ordem dos 1.300 milhões de euros que tinha por base “erros contabilísticos” efetuados intencionalmente desde 2008 pelo responsável da contabilidade” (Machado da Cruz). A auditoria não apontava para a existência de “apropriação indevida de ativos”. Poucos dias depois surgiria outra revelação que implicava Ricardo Salgado na falsificação das contas.

A análise liderada por Costa Pinto nota que, “não obstante as conclusões do relatório, a CMVM decidiu aprovar, ainda no dia 20 de maio, o prospeto da emissão acionista do BES no montante de 1.045 milhões, embora com uma referência explícita aos riscos incorridos pelos investidores devido à situação da ESI”.

O Observador revela em exclusivo o conteúdo do “Relatório Costa Pinto”, escrito pela comissão que apontou as falhas no BES. Documento defende que o Banco de Portugal podia ter feito mais e melhor.

Domingo, Abril 18th, 2021

Citamos

Observador

 

Banco de Portugal podia ter feito mais no BES. As críticas violentas do relatório secreto que nunca saiu da gaveta de Carlos Costa

 

O Observador revela em exclusivo o conteúdo do “Relatório Costa Pinto”, escrito pela comissão que apontou as falhas no BES. Documento defende que o Banco de Portugal podia ter feito mais e melhor.

O Banco de Portugal tinha conhecimento dos problemas do Banco Espírito Santo e tinha poderes para fazer mais, melhor e mais cedo – o que, provavelmente, teria mudado o curso da história que levou ao colapso do BES no verão de 2014, que ainda hoje se está a pagar.  Este é o quadro traçado no “Relatório Costa Pinto” — uma auditoria à ação do supervisor cujo acesso tem vindo a ser negado ao público em geral desde há quase seis anos. O Observador leu o documento secreto na íntegra e agora revela as suas conclusões, com as palavras exatas dirigidas a quem geriu o processo que deu lugar à resolução do banco.

Desde a instrumentalização do BES, e dos seus clientes, para financiar o grupo (uma história que começa a seguir à viragem do milénio), passando pelas manobras “dilatórias” para contornar ordens que o supervisor viu e foi permitindo, até à resistência em afastar Ricardo Salgado contra a sua vontade por receio de provocar uma crise sistémica no final do programa de assistência internacional. Sem esquecer o enorme buraco no banco em Angola, que o Banco de Portugal descobriu em data próxima à publicação de notícias sobre o assunto na imprensa portuguesa.

Este é um relatório que foi encomendado por Carlos Costa para fazer uma avaliação independente da atuação do Banco de Portugal (BdP), mas que (quase) não saiu da gaveta do ex-governador. Não foi discutido internamente na instituição – apenas foram tornadas públicas as recomendações do grupo de trabalho, necessariamente mais inócuas e desprovidas da linguagem forte utilizada nas outras quase 500 páginas do relatório. A avaliação à ação do Banco de Portugal usa palavras bem mais duras. No meio das críticas há, também, elogios ao supervisor bancário e farpas a outros reguladores e auditores, e o reconhecimento de constrangimentos do quadro legal que limitaram a intervenção do BdP, sobretudo no poder para retirar idoneidade aos gestores do grupo.

A divulgação deste relatório está, há anos, no centro de uma disputa jurídica que está prestes a chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. E os deputados passaram toda a comissão de inquérito do BES (2014/2015) a exigir – em vão – que este relatório lhes fosse entregue, um pedido que só foi acedido muito recentemente, antes do início da nova comissão de inquérito. Mesmo assim, tantos anos depois, o público continua sem poder ler o documento – mas o Observador revela o que lá está escrito.

Nuvem de palavras: estas são as palavras mais usadas no documento que ficou conhecido como “Relatório Costa Pinto”

“Banco de Portugal nunca sentiu necessidade de utilizar de forma mais estrita os [seus] poderes”

A conclusão não deixa margem para dúvidas: o Banco de Portugal tinha poderes para fazer mais, melhor e mais cedo. Ao longo de vários anos tornaram-se “manifestos” os problemas de governance no Grupo Espírito Santo, com acumulação de funções nos órgãos de gestão do grupo financeiro e em outras sociedades do grupo financeiro e em outras sociedades não-financeiras. Porém, “até fevereiro de 2014 o Banco de Portugal nunca sentiu a necessidade de utilizar de forma mais estrita os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 33.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF)”, lê-se no “Relatório Costa Pinto”.

Esta análise exaustiva aos anos que antecederam o colapso do BES falam de uma “tolerância do Banco de Portugal” em relação a um entrelaçar que se “foi agravando consideravelmente” a partir de 2002. E era “patente para a supervisão do Banco de Portugal”, como demonstra o relatório, que “existia uma acumulação de cargos de administração de sociedades financeiras e não financeiras do Grupo e que estas últimas dependiam de forma muito significativa do financiamento do BES”. Havia um “claro conflito de interesses” que “era do conhecimento do Banco de Portugal”.

A propalada estratégia de ring fencing (quando o Banco de Portugal deu ordens à gestão do BES para não aumentar a exposição ao GES), iniciada nesse mês de fevereiro de 2014, acabou por ser uma reação tardia que só foi posta em marcha “num contexto de constatação de fraude contabilística de grande dimensão na Espírito Santo Internacional (ESI)”.

“Só em fevereiro de 2014, no âmbito da aplicação da chamada estratégia de ring fencing, e já num contexto de constatação de fraude contabilística de grande dimensão na Espírito Santo Internacional (ESI), é que o Banco de Portugal exigiu alterações na governance do grupo financeiro, que tinha como empresa‐mãe a holding Espírito Santo Financial Group (ESFG).”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

Recorde-se que pelo menos desde novembro de 2013 que o Banco de Portugal sabia dos chamados passivos escondidos nas empresas do grupo, como ainda recentemente foi recordado na audição a Carlos Calvário, ex-diretor do Departamento de Risco Global que foi à comissão parlamentar de inquérito no início deste mês.

Como é dito no documento, quando o Banco de Portugal finalmente tomou medidas, em fevereiro de 2014, “algumas semanas depois” o grupo Espírito Santo viria a aprovar alterações aos seus códigos de conduta – o que sugere que uma intervenção num momento anterior poderia ter alterado o curso da história.

O Banco de Portugal poderia ter tido uma atuação mais proativa de reapreciação periódica de cargos autorizados, em vez da aparente não oposição a tais situações”, lê-se no relatório, onde se acrescenta que “uma atuação tempestiva do supervisor teria permitido mitigar os riscos de conflito de interesses decorrentes de acumulações de funções de gestão em entidades não integradas no perímetro de supervisão em base consolidada do Grupo ESFG”.

Nas recomendações que foram tornadas públicas pelo Banco de Portugal, sugere-se um reforço dos poderes que o supervisor podia ter – para obrigar Ricardo Salgado e outros administradores a deixarem de acumular funções – mas também se recomenda que o Banco de Portugal passe a aplicar de forma “estrita” os poderes que tem para evitar esse problema.

Mas é lendo a opinião de João Costa Pinto e dos seus colaboradores que se percebe que essa aplicação do regime existente já poderia ter sido importante – por outras palavras, sem prejuízo de se robustecer a legislação, a comissão não acha que faltassem poderes ao Banco de Portugal para ter agido de forma diferente. Mais tarde, o governador Carlos Costa viria a dizer, em entrevista ao Expresso, que sentia “a mesma frustração de um polícia que chega atrasado ao local do homicídio”.

“Complexidade do GES não foi preocupação prioritária até uns meses antes do colapso”

Além da questão da acumulação de cargos entre empresas financeiras e não-financeiras, o “Relatório Costa Pinto” aponta a própria complexidade de estrutura do GES (Grupo Espírito Santo) como um fator que tornava hercúlea a tarefa de supervisionar o banco e a teia de entidades que gravitavam à sua volta. Por essa razão, o relatório lamenta que não tenha sido “uma preocupação prioritária do Banco de Portugal” obrigar a uma simplificação da estrutura. Só “alguns meses antes do colapso” do banco é que foram movidos esforços relevantes nesse sentido.

Tal como o ponto anterior, esta era uma situação que remontava aos anos de Vítor Constâncio – e o problema estava identificado. Logo em 2009 o Banco de Portugal enviou a Ricardo Salgado uma proposta de intervenção por parte do Banco de Portugal para subir o patamar de consolidação da ESFG (Espírito Santo Financial Group) para uma das holdings de topo do Grupo (ESI ou Espírito Santo Control – ESC). Ora, “esta possibilidade foi frontalmente refutada pelo BES”, que indicou não considerar “razoável” essa mudança “devido à sua complexidade e exigência”.

Tendo o supervisor pedido e o banco rejeitado, em que é que ficámos? Na mesma. “Perante esta recusa, o Banco de Portugal não insistiu no pedido”, aponta o “Relatório Costa Pinto” sobre esta matéria que, podendo parecer um pormenor, poderia ter feito toda a diferença depois: “A preparação de contas consolidadas de todo o GES teria dificultado a continuação da falsificação contabilística então em curso na ESI”, que terá começado logo em 2008, afirma o relatório.

Os anos seguintes trouxeram muita “discussão interna” no Banco de Portugal sobre os perigos da complexidade do grupo e do assento de algumas das suas “pernas” em jurisdições pouco cooperantes. Mas essa “discussão interna não se materializou em nenhuma ação concreta e os constrangimentos mantiveram-se até pouco tempo antes do colapso do BES”, conclui o relatório.

Tendo em conta que o departamento de supervisão do Banco de Portugal manifestava a sua “opinião técnica” de que a complexidade do grupo GES “representava um risco material de supervisão, num banco sistémico para o sistema financeiro português, o Banco de Portugal deveria ter intervindo mais cedo, procurando relocalizar a empresa-mãe em Portugal e promovendo a simplificação da estrutura do grupo financeiro”, o que incluía eliminar “holdings intermédias que não tinham qualquer contributo operacional e que diminuíam a transparência contabilística e prudencial”.

“De acordo com a própria opinião técnica da supervisão, a complexidade do grupo GES representava um risco material de supervisão, num banco sistémico para o sistema financeiro português, o Banco de Portugal deveria ter intervindo mais cedo, procurando relocalizar a empresa‐mãe em Portugal e promovendo a simplificação da estrutura do grupo financeiro”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo“Estava perfeitamente ao alcance do Banco de Portugal a proibição ou limitação de forma estrita do financiamento do BES à ESFG e às filiais para as quais havia dificuldade de acesso a informação”, pode ler-se no relatório, notando que “tal teria evitado o crescimento muito acentuado da exposição às filiais da ESFG no Panamá e na Suíça, que contribuiu muito significativamente para os prejuízos apurados pelo banco”.

“Estratégia de contornar determinações não terá sido interpretada como manifestação da gravíssima situação”

A regra é simples: os bancos não podem assumir riscos que beneficiem pessoas ou entidades que participem nessa decisão. Parece algo óbvio mas não deixa, por isso, de estar claramente proibido nas recomendações do Comité de Basileia de Supervisão Bancária. É claro que o primeiro passo para avaliar se alguém está ou não em conflito de interesses é identificar quem são os beneficiários de uma dada operação. E, pura e simplesmente, em muitos casos o supervisor não sabia quem eram essas pessoas.

“Não obstante o Banco de Portugal ter procurado conhecer, através da estrutura de capital do Grupo, as pessoas singulares com influência dominante nas empresas, a verdade é que nunca conseguiu obter tal informação de forma completamente satisfatória”, pode ler-se no “Relatório Costa Pinto”. A dada altura, em 2011, houve uma iniciativa para obrigar os bancos a dar informação sobre os detentores do capital. Problema: “Esse sistema não foi implementado de forma adequada no BES, sem que isso tivesse sido detetado”.

Sendo uma matéria com tanta “sensibilidade, uma atitude mais proativa do supervisor para determinar quem eram, de facto, as pessoas singulares que dominavam as empresas não financeiras do GES, a que o BES estava exposto, teria permitido uma atuação mais eficaz”, lê-se no “Relatório Costa Pinto”.

O documento conta como, ainda antes, na segunda metade de 2008, o Banco de Portugal “se apercebeu” que quando se subtraía o valor do excesso de grandes riscos aos fundos próprios a Espírito Santo Financial Group ficava em “desrespeito pelo mínimo regulamentar para o rácio de solvabilidade” – passava a ficar com 7,74%, abaixo do mínimo de 9% exigido à entidade.

A partir daí, perante a “insistência” do Banco de Portugal para a redução da exposição a partes relacionadas, “o Grupo ESFG conseguiu ir explorando lacunas na regulamentação, nomeadamente permitindo a instrumentalização das companhias de seguros do próprio grupo e a utilização da base de clientes para colocação de dívida da vertente não financeira”. Em 2012, o Banco de Portugal viria a detetar um desses esquemas, envolvendo a companhia de seguros BES Vida, e “reprimiu” a instituição.

Mas teria sido importante fazer mais do que detetar e “reprimir”. As “estratégias” levadas a cabo pelo ESFG, “no sentido de contornar as determinações do Banco de Portugal, não terão sido interpretadas, na altura, como manifestação da gravíssima situação das holdings não financeiras do grupo”. Isto enquanto o grupo ia “conseguindo protelar por largos meses a aplicação efetiva das determinações do Banco de Portugal”.

“Pelo menos até ao verão de 2013, a repetição sucessiva de esquemas para contornar os limites prudenciais à exposição a partes relacionadas não terá sido interpretada pelo Banco de Portugal como uma séria violação das práticas sãs e prudentes de gestão de um grupo financeiro”, pode ler-se no “Relatório Costa Pinto”.

“Pelo menos até ao verão de 2013, a repetição sucessiva de esquemas para contornar os limites prudenciais à exposição a partes relacionadas não terá sido interpretada pelo Banco de Portugal como uma séria violação das práticas sãs e prudentes de gestão de um grupo financeiro”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

 

E mesmo aí, em 2013, quando o BES andava a colocar títulos de dívida de empresas não-financeiras do Grupo, em muitos casos retratando-os junto dos clientes como depósitos ou de remuneração garantida, a atuação do Banco de Portugal ficou aquém do que teria sido desejável. “O Banco de Portugal proibiu a comercialização pelo BES de títulos de dívida de empresas não financeiras do Grupo em fevereiro de 2014, mas poderia tê‐lo feito mais cedo no exercício dos poderes de supervisão comportamental, e também prudencial, sobre esse tipo de operações, que decorrem do RGICSF”.

Por outro lado, há a questão do exercício de validação da efetiva passagem de risco para os clientes de retalho, levada a cabo pela KPMG em final de 2012 e início de 2013. “O Banco de Portugal deveria ter liderado o processo diretamente junto do auditor externo, não permitindo que toda a comunicação fosse feita por intermédio do BES e, uma vez que a análise não foi suficientemente conclusiva, deveria ter sido solicitado um novo exercício, preferivelmente através de outro auditor externo”.

Finalmente, o relatório critica a forma como o Banco de Portugal levou a cabo a chamada estratégia de ring fencing (anel de proteção) do banco em relação ao grupo. É sabido que esse facto limitou a margem de manobra dos responsáveis do BES/GES, mas mesmo aí o Banco de Portugal introduziu um “procedimentos de controlo” para acompanhar a execução das medidas que se mostraram “insuficientes” e “o Grupo ESFG/BES voltou a recorrer (tal como tinha vindo a fazer em anos anteriores) a esquemas com diferentes graus de irregularidade para camuflar o aumento continuado da exposição à vertente não financeira, ao mesmo tempo que criava alguma ilusão de compliance”, isto é, de cumprimento.

Um problema concreto na forma como o ring fencing foi feito é que não se assegurou “um controlo independente do grupo das condições de movimentação da designada conta escrow (para onde seriam canalizados os recursos libertados pelas entidades da vertente não financeira, com vista ao reembolso dos clientes de retalho detentores de dívida dessas entidades)”.

Paradoxalmente, essa conta dedicada foi criada no próprio BES. E nem foi celebrado um contrato escrito para reger a forma como essa conta ia ser gerida – e, a propósito, devia ter-se garantido que a conta ficava “num banco independente, nunca o próprio BES”. Assim, “não é de admirar que a conta escrow não tenha cumprido a função pretendida e que os montantes que a alimentaram tenham sido utilizados de forma inadequada, ficando por pagar uma larga parcela da dívida da ESI a clientes do retalho do BES”.

A realidade, descrita pelo “Relatório Costa Pinto”, é que era uma evidência que “o sucesso da estratégia de ring fencing implicaria a falência da ESI e a sua liquidação, com a consequente perda de controlo da holding ESFG e do BES pela família Espírito Santo a favor dos credores do Grupo”. Porém, “para a família, a única esperança de manter uma posição acionista no grupo seria financiá‐lo à custa da vertente financeira, de que o BES era o sustentáculo, desrespeitando as determinações do Banco de Portugal”.

Sinais, sinais e mais sinais vindos de Angola. E o Banco de Portugal sem os ver

O Banco de Portugal falhou sob vários aspetos na identificação e interpretação de sinais de alerta quanto ao forte e rápido aumento da exposição do BES à sua filial angolana, o BESA; só “muito tarde” se apercebeu da gravidade das repercussões que esta exposição teria (e teve) para o banco português e, mais grave, mostrou uma atitude de “passividade” na reação a estes sinais, demorando dez meses a fazer uma inquirição formal ao auditor externo do banco, a KPMG Portugal, sobre as possíveis perdas associadas à carteira de crédito do BESA. Em traços largos, é assim que a comissão orientada por João Costa Pinto caracteriza a ação do supervisor nesta matéria.

A exposição do BES ao BES Angola (BESA), associada a uma “extrema falta de qualidade” da carteira de crédito do banco angolano e ao facto de o Estado angolano não ter acedido ao pedido do Banco de Portugal para que prestasse uma confirmação firme da garantia estatal sobre esta mesma carteira de crédito, foram “fatores fundamentais” para o colapso do BES. Mas houve, ao longo dos anos, sinais que poderiam ter “suscitado a atenção” do Banco de Portugal. E que deveriam ter levado o supervisor a agir de forma determinante.

O relatório da comissão liderada por Costa Pinto lista vários:

Entre dezembro de 2007 e dezembro de 2008, a exposição do BES ao BESA “subiu fortemente”, passando de 20 milhões para cerca de 1.750 milhões de euros (26% dos fundos próprios elegíveis do Grupo BES). Isto através de uma linha de “apoio à liquidez”. A exposição, acrescenta o relatório, continuou sempre a subir, atingindo 2.076 milhões de euros em 2010 e 3.300 milhões de euros em junho de 2014 (86% dos fundos próprios, devido aos prejuízos do primeiro semestre desse ano). Para dar a ideia da dimensão deste número: o segundo banco português com maior exposição a uma filial sua em Angola era o BCP, com um valor de 78 milhões de euros em dezembro de 2013.

Para dar outra ideia da dimensão, a linha de apoio à liquidez em causa, do BES para o BESA, acabaria por ser “integralmente provisionada no balanço que acompanhou a medida de resolução tomada pelo Banco de Portugal em 3 de agosto de 2014. E este provisionamento “representou mais de metade” das necessidades de financiamento totais identificadas para o Novo Banco.

O crédito concedido pelo BESA também cresceu “rapidamente” desde 2007, passando de 570 milhões em dezembro desse ano para 1.700 milhões de euros no final de 2009. Em dezembro de 2013, esse valor atingia já os 5.700 milhões de euros. Estes créditos de 5.700 milhões no BESA (sustentados em grande medida pela casa-mãe, o BES) foram concedidos sem garantia ainda sob a tutela do então chairman do banco, Álvaro Sobrinho. E ficaram conhecidos como “o buraco no BESA”.

Face ao risco de o BES vir a ter de reconhecer as imparidades do BESA no seu balanço, Ricardo Salgado conseguiu do então presidente angolano José Eduardo dos Santos uma garantia estatal de 5,7 mil milhões de dólares para cobrir o risco de incumprimento dos clientes do banco angolano. Mas o Banco de Portugal nunca aceitou a elegibilidade dessa garantia para efeitos prudenciais, por desconhecer a identidade dos beneficiários dos créditos do BESA – uma decisão que a comissão de Costa Pinto considera ter sido a correta.

Já em 2009, o BESA mostrava um rácio de transformação (empréstimos face aos depósitos) “muito mais elevado” do que o das filiais dos outros bancos portugueses em Angola. Ou seja, segundo a comissão, já traduzia “um modelo de negócio claramente de maior risco”, uma vez que se baseava “no financiamento junto da casa-mãe” em vez da captação de depósitos em Angola.

Só que o Banco de Portugal não fez uma análise às várias filiais que integravam o grupo financeiro, apenas fazia uma análise das contas consolidadas. Ou seja, como nota a comissão, “a supervisão perdeu a perspetiva das principais contrapartes do BES no seio do próprio grupo, em particular do BESA, com a agravante de que este estava sediado numa jurisdição em que era difícil obter informações que permitissem efetuar uma avaliação adequada do risco”.

“Ao não analisar as relações intra‐grupo financeiro, a supervisão perdeu a perspetiva das principais contrapartes do BES no seio do próprio grupo, em particular do BESA, com a agravante de que este estava sediado numa jurisdição em que era difícil obter informações que permitissem efetuar uma avaliação adequada do risco.”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

 

Mas deveria ter feito esse “acompanhamento efetivo”. Tanto mais que esse “acompanhamento e análise de rotina de alguns indicadores-chave, em base individual para cada entidade do grupo, teriam permitido identificar, em tempo útil, os sinais claros de alerta e atuar sobre as suas causas”.

Pior. A comissão orientada por João Costa Pinto sublinha que fica “claro que só muito tarde a supervisão se apercebeu da gravidade dos problemas que afetavam a carteira de crédito do BESA” – em data próxima à publicação de notícias sobre o assunto na imprensa portuguesa. Mas também nota um paradoxo. Apesar de já existirem “indícios de problemas potenciais” com a avaliação da carteira do BESA – primeiro em 3 de julho de 2013, mediante um relatório de controlo interno do Espírito Santo Financial Group (ESFG) e depois em novembro do mesmo ano, numa reunião com a KPMG Portugal – só em maio de 2014, quase 10 meses após o primeiro sinal, é que o Banco de Portugal solicitou “explicitamente à KPMG Portugal uma informação sobre as possíveis perdas associadas a essa carteira”.

Nota a comissão de Costa Pinto que, especialmente depois da reunião de novembro com a KPMG, “é de difícil justificação a razão pela qual não foi estabelecido um canal de comunicação célere com o auditor externo e com o Banco Nacional de Angola, visando o rápido e cabal esclarecimento das dúvidas surgidas”. Ou seja, no início de 2014, a supervisão portuguesa estava a par do seguinte quadro relativo ao BESA:

– O BES tinha uma forte e crescente exposição ao BESA;

– Havia dificuldades no cálculo de imparidades da carteira de crédito do BESA;

– A administração do BESA tinha sido substituída;

– Tinha sido iniciado um processo de reavaliação dos dossiês de crédito do BESA;

– Até final de 2013 havia uma“alegada impossibilidade” de acesso a informação relevante sobre os dossiês de crédito, essencial para o cálculo de imparidades por parte da KPMG Angola.

“A natureza e as implicações potenciais destes elementos teriam justificado uma inquirição formal da KPMG Portugal por parte da supervisão (…) que instasse a auditora ao cumprimento dos deveres de informação”, sublinha o relatório. Mas tal só aconteceu em maio de 2014.

“É de difícil justificação a razão pela qual não foi estabelecido um canal de comunicação célere com o auditor externo e com o Banco Nacional de Angola, visando o rápido e cabal esclarecimento das dúvidas surgidas”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

“Manutenção de Ricardo Salgado em funções não foi a opção adequada”

Com o benefício daquilo que se sabe a posteriori, isto é, sabendo-se que o ring fencing não foi uma estratégia eficaz na proteção do banco, “a Comissão entende que a manutenção de Ricardo Salgado em funções não foi a opção adequada”, pode ler-se no “Relatório Costa Pinto”.

Teria sido preferível uma atuação mais decisiva, logo que ficaram disponíveis elementos que confirmavam a situação de insolvência da vertente não financeira do GES e, em particular, depois de conhecidos os primeiros resultados do exercício ETRICC 2, em novembro/dezembro de 2013”, defendem os autores do documento.

Recorde-se que a partir de setembro de 2013, quando começaram a surgir notícias nos jornais que colocavam em causa os princípios éticos de alguns dos envolvidos, desde logo relativamente ao cumprimento de obrigações fiscais e outras situações, o Banco de Portugal iniciou um processo de avaliação de idoneidade de vários administradores do BES, incluindo Ricardo Salgado. A ideia era, gradualmente, persuadir o gestor a avançar para uma “sucessão controlada” – mas esse processo acabou por ser protelado até depois do aumento de capital que acabaria por acontecer em junho de 2014. Ou seja, mais de nove meses depois do início do processo.

Tendo ficado claro que esses meses foram aproveitados por Ricardo Salgado para se movimentar precisamente no sentido contrário do que se pretendia com a estratégia de ring fencing, o plano saiu furado.

Havia uma certeza: o ring fencing do banco “significaria a falência da ESI e a sua liquidação”, ou seja, levaria à “perda de controlo do grupo ESFG e do BES pela família Espírito Santo a favor dos credores do GES”. Ricardo Salgado e outros simplesmente não aceitaram esse cenário: “a única possibilidade de manter uma posição acionista na vertente não financeira dependia de continuar a assegurar o seu financiamento pela vertente financeira” – e isso, logicamente, era precisamente aquilo que o Banco de Portugal queria impedir.

É certo que extrair Ricardo Salgado do banco seria um processo de gestão complexa e a comissão Costa Pinto chega a admitir que “tal decisão pressupunha a existência de um adequado plano de apoio financeiro público”, para evitar que se gerasse uma “crise de confiança, com eventuais implicações sistémicas”.

Esse “adequado plano de apoio financeiro público” tinha, porém, de ser feito “num quadro jurídico de recapitalização pública bastante mais exigente para os acionistas e obrigacionistas subordinados do que aquele que existia em 2012”, quando outros bancos receberam apoio público proveniente da linha de 12 mil milhões de euros prevista no programa da troika para o setor financeiro.

A evolução das regras europeias, vertidas na legislação nacional, impedia que um eventual apoio ao BES pudesse ser dado nas mesmas condições que tinha sido dado a bancos como o BPI e o BCP, em 2012, na forma dos empréstimos conhecidos como “CoCo’s”, que tinham juros punitivos mas que não implicavam perdas diretas para acionistas e detentores de títulos de dívida.

“A complexidade da decisão da remoção de Ricardo Salgado dos cargos executivos que ocupava no Grupo ESFG e, em particular, no BES era aumentada pelo seu impacto previsível sobre a reputação deste banco, podendo mesmo levar a uma crise de confiança, com eventuais implicações sistémicas. Uma tal decisão pressupunha, por isso, a existência de um adequado plano de apoio financeiro público”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

Não foi essa a opção tomada. E a comissão liderada por Costa Pinto lembra que teria ocorrido na fase final do programa da troika – os primeiros meses de 2014, “com potenciais implicações na forma como este foi concluído”, isto é, na chamada saída limpa. Evitou-se esse problema mas, depois, com o aumento de capital de junho de 2014 – considerado pela imprensa financeira estrangeira como um dos piores negócios do século para os investidores – acabou por causar-se “danos” na confiança dos investidores estrangeiros “no mercado de capitais português, quer na reputação nacional e internacional dos supervisores”.

“Banco de Portugal autolimitou-se” e partilha de informação com CMVM foi “deficiente”

A venda de produtos financeiros do GES aos balcões do BES ajudou a mascarar os problemas que existiam no grupo e, ao mesmo tempo, metastizou as perdas por um conjunto alargado e variado de clientes – os que vieram a ser conhecidos como “lesados do BES”. E a opinião da comissão liderada por Costa Pinto é que o Banco de Portugal deveria ter feito mais para controlar essa situação, pese embora a CMVM fosse, a partir de 2009, a principal responsável por supervisionar essas vendas de produtos complexos.

A comissão liderada por Costa Pinto considera que o Banco de Portugal se “autolimitou” em demasia nessa supervisão comportamental. É certo que desde o acordo com a CMVM, de 2009, passou a haver uma “sobreposição legal de competências regulatórias e de supervisão entre o Banco de Portugal e a CMVM relativamente à comercialização de instrumentos financeiros”, mas isso “não dispensa o Banco de Portugal de apreciar o modo como a CMVM executa a sua atividade de supervisão e de intervir diretamente sempre que o considere necessário”, sustenta o relatório.

“Ora, havendo sinais claros desde 2012 de que a CMVM não estava a disciplinar adequadamente a comercialização de produtos financeiros aos balcões do BES, com destaque para a venda de obrigações do próprio banco, de UP do fundo ES Liquidez e de papel comercial de entidades não financeiras do GES, o Banco de Portugal tinha a possibilidade de intervir de modo a disciplinar essas vendas”, atira o relatório.

“Havendo sinais claros desde 2012 de que a CMVM não estava a disciplinar adequadamente a comercialização de produtos financeiros aos balcões do BES, com destaque para a venda de obrigações do próprio banco, de UP do fundo ES Liquidez e de papel comercial de entidades não financeiras do GES, o Banco de Portugal tinha a possibilidade de intervir de modo a disciplinar essas vendas”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

O Banco de Portugal acabaria por tomar medidas, mas “apenas em novembro de 2013 para as obrigações próprias, e em fevereiro de 2014 para a dívida das entidades não financeiras do GES, já no âmbito da implementação da estratégia de ring fencing”. Já foi tarde, advoga a comissão.

Além da questão da inação do Banco de Portugal, que não devia ter acontecido “sem prejuízo da responsabilidade primordial da CMVM nas falhas de supervisão comportamental”, o relatório aponta que também houve uma “deficiente articulação” entre os dois supervisores.

“No que respeita à venda de unidades de participação de fundos mobiliários, o Banco de Portugal conhecia, desde final de 2012, a concentração das suas carteiras em dívida GES, tendo aliás exigido ao BES (em 8 de novembro de 2012) um trabalho específico da KPMG para avaliar a existência de transferência efetiva de risco para fora do grupo financeiro”, diz o relatório, lamentando: “Aparentemente, esta preocupação prudencial não terá sido do conhecimento da CMVM”.

Por outro lado, no que diz respeito ao famoso “papel comercial”, “de acordo com os registos documentais consultados pela Comissão, foi apenas na reunião realizada em 4 de abril de 2014 que responsáveis técnicos do Banco de Portugal deram conta aos seus congéneres da CMVM das suas preocupações prudenciais sobre a questão”. Mas o Banco de Portugal “tinha conhecimento dessas vendas desde outubro de 2013”.

“Em ambas as matérias, UP de fundos geridos pela ESAF e comercialização de papel comercial, a CMVM tinha responsabilidades específicas de supervisão que não desempenhou satisfatoriamente. Mas o Banco de Portugal, para além da autolimitação a que se remeteu desde 2009 em termos de supervisão comportamental na comercialização de produtos financeiros aos balcões dos bancos, não tomou a iniciativa de passar à CMVM informações relevantes”, remata o relatório.

“Banco de Portugal surpreendentemente permitiu uma atuação dilatória da KPMG”

O “Relatório Costa Pinto” reserva, também, um ponto específico para julgar a relação com auditores externos do BES/GES, no caso a PwC e a KPMG – mas se no primeiro caso o Banco de Portugal até ficou bem na fotografia, no segundo o mesmo não acontece.

A PwC foi auditora do BES até 2002, altura em que, numa “decisão que ia contra os interesses comerciais da auditora”, decidiu interromper a ligação ao BES. Porque é que uma auditora havia de prescindir de um cliente tão relevante, que mantinha desde 1992? “O Banco de Portugal procurou avaliar”, diz o relatório, “atuando de forma adequada”.

A auditora terá negado de forma “categórica” que existiam problemas potencialmente relevantes para a supervisão. É por isso que, diz o relatório, são de “particular gravidade” as declarações de José Pereira Alves, sócio responsável pela PwC Portugal, em 2015. Em plena comissão de inquérito ao BES, o responsável “revelou novos elementos sobre os motivos pelos quais em 2002 a PwC cessou o contrato”: afinal, a auditora não estava confortável com o “incumprimento de regras básicas de governação na holding ESFG e no BES, tal como o facto de Ricardo Salgado aumular a presidência de vários órgãos sociais do Grupo, concentrando muita informação e dificultando o seu acesso por parte do auditor externo”.

Já no que diz respeito à KPMG, que sucedeu à PwC como auditor externo, o Banco de Portugal não procedeu tão bem – desde logo, na questão da exposição a partes relacionadas. Foi nesse âmbito que em novembro de 2012 o Banco de Portugal enviou uma carta ao BES a pedir que fosse feito um trabalho (pela KPMG) para “avaliar o grau de transferência efetiva de riscos para fora do Grupo BES, com a colocação nos seus clientes das UP [unidades de participação] dos fundos mobiliários geridos pela ESAF”.

Esse trabalho foi feito em quatro meses, mas “os objetivos pretendidos pelo Banco de Portugal não foram atingidos, por um lado, porque não foi feita uma circularização de clientes e, por outro, porque o foco da análise incidiu nos clientes de gestão discricionária”. Ora, o Banco de Portugal pediu que o trabalho fosse melhorado, “e teve de insistir passados vários meses, mas nunca conseguiu que a avaliação fosse efetuada”.

O que fez o Banco de Portugal, então, “quando confrontado com resultados claramente insuficientes em relação aos objetivos da supervisão”, em março de 2013? O relatório considera que “o Banco de Portugal surpreendentemente permitiu uma atuação dilatória da KPMG, a qual nunca chegou a fornecer as informações solicitadas”.

“Uma atitude mais assertiva e um acompanhamento mais próximo teriam decerto permitido a obtenção da informação indispensável a um acompanhamento e controlo mais eficazes da situação do Grupo”, critica a comissão liderada por João Costa Pinto.

“O Banco de Portugal surpreendentemente permitiu uma atuação dilatória da KPMG, a qual nunca chegou a fornecer as informações solicitadas. Uma atitude mais assertiva e um acompanhamento mais próximo teriam decerto permitido a obtenção da informação indispensável a um acompanhamento e controlo mais eficazes da situação do Grupo”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

 

A comissão acrescenta, ainda, como já foi referido, que o Banco de Portugal não agiu bem no que diz respeito aos “indícios de que o Banco de Portugal dispunha, a partir do final de 2013 sobre a qualidade da carteira de crédito do BESA”. Esses indícios “eram suficientes para que tivesse sido desencadeada uma inquirição formal da KPMG Portugal, de modo a garantir que esta obtinha da KPMG Angola, em tempo útil, os esclarecimentos necessários para um cabal conhecimento e avaliação dos riscos que o BESA representava para o Grupo e, em particular, para o BES”.

“Esta solicitação só veio a verificar‐se em 30 de maio de 2014, na fase final do processo que levaria à resolução do BES”, remata a comissão.

A falta de um “pensamento jurídico uniforme” entre os vários departamentos do Banco de Portugal

“O caso GES/BES revelou não existir, nesse contexto funcional, um pensamento jurídico uniforme que, de forma consistente, fosse sendo aplicado pelo Conselho de Administração e pelos vários departamentos encarregados da execução das normas do RGICSF”, afirma a comissão. Esta é a crítica que os autores do relatório fazem à organização interna do Banco de Portugal, designadamente no modelo que foi criado pelo ex-governador Carlos Costa.

Em janeiro de 2011, meio ano depois de Carlos Costa suceder a Vítor Constâncio, subdividiu-se o Departamento de Supervisão Bancária em três (supervisão prudencial, supervisão comportamental e ação sancionatória). Depois, no mês seguinte, foi criada a Comissão Especializada para a Supervisão e Estabilidade Financeira (CESEF), uma estrutura à qual cabe identificar riscos sistémicos na banca e que viria a ser “substancialmente alterada” em junho de 2013, na altura em que também foi criado o Departamento de Estabilidade Financeira.

 

“Não obstante estas melhorias na governance das funções de supervisão e estabilidade financeira, constata‐se que, no caso das funções jurídicas e sem prejuízo de as várias áreas operacionais da supervisão manterem algumas estruturas próprias de apoio jurídico interno, se verificam problemas na organização do interface entre a supervisão e o correspondente apoio jurídico global visando a necessária consistência na aplicação das normas”, atira o relatório Costa Pinto.

Ou seja, geraram-se dificuldades “notórias” que a comissão enumera: na aplicação das normas de idoneidade, na determinação de medidas corretivas previstas no RGICSF, no impedimento de acumulação de cargos e, também, na tomada de medidas que obrigassem, efetivamente, à simplificação da estrutura do grupo BES/GES ou outras. Finalmente, também na “definição da estrutura jurídica da conta escrow imposta no âmbito da estratégia de ring fencing” ficou claro que faltou “um pensamento jurídico uniforme” aplicado de forma “consistente”.

Quem são os autores do “Relatório Costa Pinto”?

 Esconder

O trabalho desta “Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo” focou-se no caso do BES e “no período de três anos que antecedeu a resolução, sem prejuízo de esse período ser alargado sempre que relevante para a compreensão dos acontecimentos”. Ainda assim, diz o relatório, houve “necessidade de recuar no tempo tenha acabado por se revelar mais frequente e importante para a avaliação do que era a expectativa inicial”.

O objetivo foi “a identificação numa ótica prospetiva de eventuais melhorias a introduzir na supervisão” e foram identificados “significativos problemas” que “justificam, à luz da experiência colhida neste caso BES/GES, reformas importantes e alterações muito apreciáveis dos processos de supervisão financeira”.

A Comissão integrou cinco membros, sendo o presidente João Costa Pinto, na altura líder do Conselho de Auditoria do Banco de Portugal. Este contou com a ajuda de Maximiano Pinheiro e Norberto Rosa, ambos consultores do Conselho de Administração do Banco de Portugal. Por outro lado, participaram dois juristas externos ao Banco de Portugal, nomeados por Costa Pinto, “no respeito por critérios de competência, independência e idoneidade: José Robin de Andrade, especialista nas áreas do direito administrativo e do direito económico, e Luís Silva Morais, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Cátedra Jean Monnet em regulação) e especialista em regulação económica.

O trabalho destes cinco foi apoiado, ainda, pela empresa de consultoria estratégica The Boston Consulting Group (BCG).

 

 

Governo prevê injeção de 430 milhões no Novo Banco este ano

Domingo, Abril 18th, 2021

Citamos

Observador

O Observador revela em exclusivo o conteúdo do “Relatório Costa Pinto”, escrito pela comissão que apontou as falhas no BES. Documento defende que o Banco de Portugal podia ter feito mais e melhor.

O Banco de Portugal tinha conhecimento dos problemas do Banco Espírito Santo e tinha poderes para fazer mais, melhor e mais cedo – o que, provavelmente, teria mudado o curso da história que levou ao colapso do BES no verão de 2014, que ainda hoje se está a pagar.  Este é o quadro traçado no “Relatório Costa Pinto” — uma auditoria à ação do supervisor cujo acesso tem vindo a ser negado ao público em geral desde há quase seis anos. O Observador leu o documento secreto na íntegra e agora revela as suas conclusões, com as palavras exatas dirigidas a quem geriu o processo que deu lugar à resolução do banco.

Desde a instrumentalização do BES, e dos seus clientes, para financiar o grupo (uma história que começa a seguir à viragem do milénio), passando pelas manobras “dilatórias” para contornar ordens que o supervisor viu e foi permitindo, até à resistência em afastar Ricardo Salgado contra a sua vontade por receio de provocar uma crise sistémica no final do programa de assistência internacional. Sem esquecer o enorme buraco no banco em Angola, que o Banco de Portugal descobriu em data próxima à publicação de notícias sobre o assunto na imprensa portuguesa.

Este é um relatório que foi encomendado por Carlos Costa para fazer uma avaliação independente da atuação do Banco de Portugal (BdP), mas que (quase) não saiu da gaveta do ex-governador. Não foi discutido internamente na instituição – apenas foram tornadas públicas as recomendações do grupo de trabalho, necessariamente mais inócuas e desprovidas da linguagem forte utilizada nas outras quase 500 páginas do relatório. A avaliação à ação do Banco de Portugal usa palavras bem mais duras. No meio das críticas há, também, elogios ao supervisor bancário e farpas a outros reguladores e auditores, e o reconhecimento de constrangimentos do quadro legal que limitaram a intervenção do BdP, sobretudo no poder para retirar idoneidade aos gestores do grupo.

A divulgação deste relatório está, há anos, no centro de uma disputa jurídica que está prestes a chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. E os deputados passaram toda a comissão de inquérito do BES (2014/2015) a exigir – em vão – que este relatório lhes fosse entregue, um pedido que só foi acedido muito recentemente, antes do início da nova comissão de inquérito. Mesmo assim, tantos anos depois, o público continua sem poder ler o documento – mas o Observador revela o que lá está escrito.

Nuvem de palavras: estas são as palavras mais usadas no documento que ficou conhecido como “Relatório Costa Pinto”

“Banco de Portugal nunca sentiu necessidade de utilizar de forma mais estrita os [seus] poderes”

A conclusão não deixa margem para dúvidas: o Banco de Portugal tinha poderes para fazer mais, melhor e mais cedo. Ao longo de vários anos tornaram-se “manifestos” os problemas de governance no Grupo Espírito Santo, com acumulação de funções nos órgãos de gestão do grupo financeiro e em outras sociedades do grupo financeiro e em outras sociedades não-financeiras. Porém, “até fevereiro de 2014 o Banco de Portugal nunca sentiu a necessidade de utilizar de forma mais estrita os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 33.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF)”, lê-se no “Relatório Costa Pinto”.

Esta análise exaustiva aos anos que antecederam o colapso do BES falam de uma “tolerância do Banco de Portugal” em relação a um entrelaçar que se “foi agravando consideravelmente” a partir de 2002. E era “patente para a supervisão do Banco de Portugal”, como demonstra o relatório, que “existia uma acumulação de cargos de administração de sociedades financeiras e não financeiras do Grupo e que estas últimas dependiam de forma muito significativa do financiamento do BES”. Havia um “claro conflito de interesses” que “era do conhecimento do Banco de Portugal”.

A propalada estratégia de ring fencing (quando o Banco de Portugal deu ordens à gestão do BES para não aumentar a exposição ao GES), iniciada nesse mês de fevereiro de 2014, acabou por ser uma reação tardia que só foi posta em marcha “num contexto de constatação de fraude contabilística de grande dimensão na Espírito Santo Internacional (ESI)”.

“Só em fevereiro de 2014, no âmbito da aplicação da chamada estratégia de ring fencing, e já num contexto de constatação de fraude contabilística de grande dimensão na Espírito Santo Internacional (ESI), é que o Banco de Portugal exigiu alterações na governance do grupo financeiro, que tinha como empresa‐mãe a holding Espírito Santo Financial Group (ESFG).”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

 

Recorde-se que pelo menos desde novembro de 2013 que o Banco de Portugal sabia dos chamados passivos escondidos nas empresas do grupo, como ainda recentemente foi recordado na audição a Carlos Calvário, ex-diretor do Departamento de Risco Global que foi à comissão parlamentar de inquérito no início deste mês.

Como é dito no documento, quando o Banco de Portugal finalmente tomou medidas, em fevereiro de 2014, “algumas semanas depois” o grupo Espírito Santo viria a aprovar alterações aos seus códigos de conduta – o que sugere que uma intervenção num momento anterior poderia ter alterado o curso da história.

O Banco de Portugal poderia ter tido uma atuação mais proativa de reapreciação periódica de cargos autorizados, em vez da aparente não oposição a tais situações”, lê-se no relatório, onde se acrescenta que “uma atuação tempestiva do supervisor teria permitido mitigar os riscos de conflito de interesses decorrentes de acumulações de funções de gestão em entidades não integradas no perímetro de supervisão em base consolidada do Grupo ESFG”.

Nas recomendações que foram tornadas públicas pelo Banco de Portugal, sugere-se um reforço dos poderes que o supervisor podia ter – para obrigar Ricardo Salgado e outros administradores a deixarem de acumular funções – mas também se recomenda que o Banco de Portugal passe a aplicar de forma “estrita” os poderes que tem para evitar esse problema.

Mas é lendo a opinião de João Costa Pinto e dos seus colaboradores que se percebe que essa aplicação do regime existente já poderia ter sido importante – por outras palavras, sem prejuízo de se robustecer a legislação, a comissão não acha que faltassem poderes ao Banco de Portugal para ter agido de forma diferente. Mais tarde, o governador Carlos Costa viria a dizer, em entrevista ao Expresso, que sentia “a mesma frustração de um polícia que chega atrasado ao local do homicídio”.

“Complexidade do GES não foi preocupação prioritária até uns meses antes do colapso”

Além da questão da acumulação de cargos entre empresas financeiras e não-financeiras, o “Relatório Costa Pinto” aponta a própria complexidade de estrutura do GES (Grupo Espírito Santo) como um fator que tornava hercúlea a tarefa de supervisionar o banco e a teia de entidades que gravitavam à sua volta. Por essa razão, o relatório lamenta que não tenha sido “uma preocupação prioritária do Banco de Portugal” obrigar a uma simplificação da estrutura. Só “alguns meses antes do colapso” do banco é que foram movidos esforços relevantes nesse sentido.

Tal como o ponto anterior, esta era uma situação que remontava aos anos de Vítor Constâncio – e o problema estava identificado. Logo em 2009 o Banco de Portugal enviou a Ricardo Salgado uma proposta de intervenção por parte do Banco de Portugal para subir o patamar de consolidação da ESFG (Espírito Santo Financial Group) para uma das holdings de topo do Grupo (ESI ou Espírito Santo Control – ESC). Ora, “esta possibilidade foi frontalmente refutada pelo BES”, que indicou não considerar “razoável” essa mudança “devido à sua complexidade e exigência”.

Tendo o supervisor pedido e o banco rejeitado, em que é que ficámos? Na mesma. “Perante esta recusa, o Banco de Portugal não insistiu no pedido”, aponta o “Relatório Costa Pinto” sobre esta matéria que, podendo parecer um pormenor, poderia ter feito toda a diferença depois: “A preparação de contas consolidadas de todo o GES teria dificultado a continuação da falsificação contabilística então em curso na ESI”, que terá começado logo em 2008, afirma o relatório.

Os anos seguintes trouxeram muita “discussão interna” no Banco de Portugal sobre os perigos da complexidade do grupo e do assento de algumas das suas “pernas” em jurisdições pouco cooperantes. Mas essa “discussão interna não se materializou em nenhuma ação concreta e os constrangimentos mantiveram-se até pouco tempo antes do colapso do BES”, conclui o relatório.

Tendo em conta que o departamento de supervisão do Banco de Portugal manifestava a sua “opinião técnica” de que a complexidade do grupo GES “representava um risco material de supervisão, num banco sistémico para o sistema financeiro português, o Banco de Portugal deveria ter intervindo mais cedo, procurando relocalizar a empresa-mãe em Portugal e promovendo a simplificação da estrutura do grupo financeiro”, o que incluía eliminar “holdings intermédias que não tinham qualquer contributo operacional e que diminuíam a transparência contabilística e prudencial”.

De acordo com a própria opinião técnica da supervisão, a complexidade do grupo GES representava um risco material de supervisão, num banco sistémico para o sistema financeiro português, o Banco de Portugal deveria ter intervindo mais cedo, procurando relocalizar a empresa‐mãe em Portugal e promovendo a simplificação da estrutura do grupo financeiro”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

Estava perfeitamente ao alcance do Banco de Portugal a proibição ou limitação de forma estrita do financiamento do BES à ESFG e às filiais para as quais havia dificuldade de acesso a informação”, pode ler-se no relatório, notando que “tal teria evitado o crescimento muito acentuado da exposição às filiais da ESFG no Panamá e na Suíça, que contribuiu muito significativamente para os prejuízos apurados pelo banco”.

“Estratégia de contornar determinações não terá sido interpretada como manifestação da gravíssima situação”

A regra é simples: os bancos não podem assumir riscos que beneficiem pessoas ou entidades que participem nessa decisão. Parece algo óbvio mas não deixa, por isso, de estar claramente proibido nas recomendações do Comité de Basileia de Supervisão Bancária. É claro que o primeiro passo para avaliar se alguém está ou não em conflito de interesses é identificar quem são os beneficiários de uma dada operação. E, pura e simplesmente, em muitos casos o supervisor não sabia quem eram essas pessoas.

“Não obstante o Banco de Portugal ter procurado conhecer, através da estrutura de capital do Grupo, as pessoas singulares com influência dominante nas empresas, a verdade é que nunca conseguiu obter tal informação de forma completamente satisfatória”, pode ler-se no “Relatório Costa Pinto”. A dada altura, em 2011, houve uma iniciativa para obrigar os bancos a dar informação sobre os detentores do capital. Problema: “Esse sistema não foi implementado de forma adequada no BES, sem que isso tivesse sido detetado”.

Sendo uma matéria com tanta “sensibilidade, uma atitude mais proativa do supervisor para determinar quem eram, de facto, as pessoas singulares que dominavam as empresas não financeiras do GES, a que o BES estava exposto, teria permitido uma atuação mais eficaz”, lê-se no “Relatório Costa Pinto”.

O documento conta como, ainda antes, na segunda metade de 2008, o Banco de Portugal “se apercebeu” que quando se subtraía o valor do excesso de grandes riscos aos fundos próprios a Espírito Santo Financial Group ficava em “desrespeito pelo mínimo regulamentar para o rácio de solvabilidade” – passava a ficar com 7,74%, abaixo do mínimo de 9% exigido à entidade.

A partir daí, perante a “insistência” do Banco de Portugal para a redução da exposição a partes relacionadas, “o Grupo ESFG conseguiu ir explorando lacunas na regulamentação, nomeadamente permitindo a instrumentalização das companhias de seguros do próprio grupo e a utilização da base de clientes para colocação de dívida da vertente não financeira”. Em 2012, o Banco de Portugal viria a detetar um desses esquemas, envolvendo a companhia de seguros BES Vida, e “reprimiu” a instituição.

Mas teria sido importante fazer mais do que detetar e “reprimir”. As “estratégias” levadas a cabo pelo ESFG, “no sentido de contornar as determinações do Banco de Portugal, não terão sido interpretadas, na altura, como manifestação da gravíssima situação das holdings não financeiras do grupo”. Isto enquanto o grupo ia “conseguindo protelar por largos meses a aplicação efetiva das determinações do Banco de Portugal”.

“Pelo menos até ao verão de 2013, a repetição sucessiva de esquemas para contornar os limites prudenciais à exposição a partes relacionadas não terá sido interpretada pelo Banco de Portugal como uma séria violação das práticas sãs e prudentes de gestão de um grupo financeiro”, pode ler-se no “Relatório Costa Pinto”.

“Pelo menos até ao verão de 2013, a repetição sucessiva de esquemas para contornar os limites prudenciais à exposição a partes relacionadas não terá sido interpretada pelo Banco de Portugal como uma séria violação das práticas sãs e prudentes de gestão de um grupo financeiro”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

E mesmo aí, em 2013, quando o BES andava a colocar títulos de dívida de empresas não-financeiras do Grupo, em muitos casos retratando-os junto dos clientes como depósitos ou de remuneração garantida, a atuação do Banco de Portugal ficou aquém do que teria sido desejável. “O Banco de Portugal proibiu a comercialização pelo BES de títulos de dívida de empresas não financeiras do Grupo em fevereiro de 2014, mas poderia tê‐lo feito mais cedo no exercício dos poderes de supervisão comportamental, e também prudencial, sobre esse tipo de operações, que decorrem do RGICSF”.

Por outro lado, há a questão do exercício de validação da efetiva passagem de risco para os clientes de retalho, levada a cabo pela KPMG em final de 2012 e início de 2013. “O Banco de Portugal deveria ter liderado o processo diretamente junto do auditor externo, não permitindo que toda a comunicação fosse feita por intermédio do BES e, uma vez que a análise não foi suficientemente conclusiva, deveria ter sido solicitado um novo exercício, preferivelmente através de outro auditor externo”.

Finalmente, o relatório critica a forma como o Banco de Portugal levou a cabo a chamada estratégia de ring fencing (anel de proteção) do banco em relação ao grupo. É sabido que esse facto limitou a margem de manobra dos responsáveis do BES/GES, mas mesmo aí o Banco de Portugal introduziu um “procedimentos de controlo” para acompanhar a execução das medidas que se mostraram “insuficientes” e “o Grupo ESFG/BES voltou a recorrer (tal como tinha vindo a fazer em anos anteriores) a esquemas com diferentes graus de irregularidade para camuflar o aumento continuado da exposição à vertente não financeira, ao mesmo tempo que criava alguma ilusão de compliance”, isto é, de cumprimento.

Um problema concreto na forma como o ring fencing foi feito é que não se assegurou “um controlo independente do grupo das condições de movimentação da designada conta escrow (para onde seriam canalizados os recursos libertados pelas entidades da vertente não financeira, com vista ao reembolso dos clientes de retalho detentores de dívida dessas entidades)”.

Paradoxalmente, essa conta dedicada foi criada no próprio BES. E nem foi celebrado um contrato escrito para reger a forma como essa conta ia ser gerida – e, a propósito, devia ter-se garantido que a conta ficava “num banco independente, nunca o próprio BES”. Assim, “não é de admirar que a conta escrow não tenha cumprido a função pretendida e que os montantes que a alimentaram tenham sido utilizados de forma inadequada, ficando por pagar uma larga parcela da dívida da ESI a clientes do retalho do BES”.

A realidade, descrita pelo “Relatório Costa Pinto”, é que era uma evidência que “o sucesso da estratégia de ring fencing implicaria a falência da ESI e a sua liquidação, com a consequente perda de controlo da holding ESFG e do BES pela família Espírito Santo a favor dos credores do Grupo”. Porém, “para a família, a única esperança de manter uma posição acionista no grupo seria financiá‐lo à custa da vertente financeira, de que o BES era o sustentáculo, desrespeitando as determinações do Banco de Portugal”.

 

Sinais, sinais e mais sinais vindos de Angola. E o Banco de Portugal sem os ver

O Banco de Portugal falhou sob vários aspetos na identificação e interpretação de sinais de alerta quanto ao forte e rápido aumento da exposição do BES à sua filial angolana, o BESA; só “muito tarde” se apercebeu da gravidade das repercussões que esta exposição teria (e teve) para o banco português e, mais grave, mostrou uma atitude de “passividade” na reação a estes sinais, demorando dez meses a fazer uma inquirição formal ao auditor externo do banco, a KPMG Portugal, sobre as possíveis perdas associadas à carteira de crédito do BESA. Em traços largos, é assim que a comissão orientada por João Costa Pinto caracteriza a ação do supervisor nesta matéria.

A exposição do BES ao BES Angola (BESA), associada a uma “extrema falta de qualidade” da carteira de crédito do banco angolano e ao facto de o Estado angolano não ter acedido ao pedido do Banco de Portugal para que prestasse uma confirmação firme da garantia estatal sobre esta mesma carteira de crédito, foram “fatores fundamentais” para o colapso do BES. Mas houve, ao longo dos anos, sinais que poderiam ter “suscitado a atenção” do Banco de Portugal. E que deveriam ter levado o supervisor a agir de forma determinante.

O relatório da comissão liderada por Costa Pinto lista vários:

Entre dezembro de 2007 e dezembro de 2008, a exposição do BES ao BESA “subiu fortemente”, passando de 20 milhões para cerca de 1.750 milhões de euros (26% dos fundos próprios elegíveis do Grupo BES). Isto através de uma linha de “apoio à liquidez”. A exposição, acrescenta o relatório, continuou sempre a subir, atingindo 2.076 milhões de euros em 2010 e 3.300 milhões de euros em junho de 2014 (86% dos fundos próprios, devido aos prejuízos do primeiro semestre desse ano). Para dar a ideia da dimensão deste número: o segundo banco português com maior exposição a uma filial sua em Angola era o BCP, com um valor de 78 milhões de euros em dezembro de 2013.

Para dar outra ideia da dimensão, a linha de apoio à liquidez em causa, do BES para o BESA, acabaria por ser “integralmente provisionada no balanço que acompanhou a medida de resolução tomada pelo Banco de Portugal em 3 de agosto de 2014. E este provisionamento “representou mais de metade” das necessidades de financiamento totais identificadas para o Novo Banco.

O crédito concedido pelo BESA também cresceu “rapidamente” desde 2007, passando de 570 milhões em dezembro desse ano para 1.700 milhões de euros no final de 2009. Em dezembro de 2013, esse valor atingia já os 5.700 milhões de euros. Estes créditos de 5.700 milhões no BESA (sustentados em grande medida pela casa-mãe, o BES) foram concedidos sem garantia ainda sob a tutela do então chairman do banco, Álvaro Sobrinho. E ficaram conhecidos como “o buraco no BESA”.

Face ao risco de o BES vir a ter de reconhecer as imparidades do BESA no seu balanço, Ricardo Salgado conseguiu do então presidente angolano José Eduardo dos Santos uma garantia estatal de 5,7 mil milhões de dólares para cobrir o risco de incumprimento dos clientes do banco angolano. Mas o Banco de Portugal nunca aceitou a elegibilidade dessa garantia para efeitos prudenciais, por desconhecer a identidade dos beneficiários dos créditos do BESA – uma decisão que a comissão de Costa Pinto considera ter sido a correta.

Já em 2009, o BESA mostrava um rácio de transformação (empréstimos face aos depósitos) “muito mais elevado” do que o das filiais dos outros bancos portugueses em Angola. Ou seja, segundo a comissão, já traduzia “um modelo de negócio claramente de maior risco”, uma vez que se baseava “no financiamento junto da casa-mãe” em vez da captação de depósitos em Angola.

Só que o Banco de Portugal não fez uma análise às várias filiais que integravam o grupo financeiro, apenas fazia uma análise das contas consolidadas. Ou seja, como nota a comissão, “a supervisão perdeu a perspetiva das principais contrapartes do BES no seio do próprio grupo, em particular do BESA, com a agravante de que este estava sediado numa jurisdição em que era difícil obter informações que permitissem efetuar uma avaliação adequada do risco”.

“Ao não analisar as relações intra‐grupo financeiro, a supervisão perdeu a perspetiva das principais contrapartes do BES no seio do próprio grupo, em particular do BESA, com a agravante de que este estava sediado numa jurisdição em que era difícil obter informações que permitissem efetuar uma avaliação adequada do risco.”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

 

Mas deveria ter feito esse “acompanhamento efetivo”. Tanto mais que esse “acompanhamento e análise de rotina de alguns indicadores-chave, em base individual para cada entidade do grupo, teriam permitido identificar, em tempo útil, os sinais claros de alerta e atuar sobre as suas causas”.

Pior. A comissão orientada por João Costa Pinto sublinha que fica “claro que só muito tarde a supervisão se apercebeu da gravidade dos problemas que afetavam a carteira de crédito do BESA” – em data próxima à publicação de notícias sobre o assunto na imprensa portuguesa. Mas também nota um paradoxo. Apesar de já existirem “indícios de problemas potenciais” com a avaliação da carteira do BESA – primeiro em 3 de julho de 2013, mediante um relatório de controlo interno do Espírito Santo Financial Group (ESFG) e depois em novembro do mesmo ano, numa reunião com a KPMG Portugal – só em maio de 2014, quase 10 meses após o primeiro sinal, é que o Banco de Portugal solicitou “explicitamente à KPMG Portugal uma informação sobre as possíveis perdas associadas a essa carteira”.

Nota a comissão de Costa Pinto que, especialmente depois da reunião de novembro com a KPMG, “é de difícil justificação a razão pela qual não foi estabelecido um canal de comunicação célere com o auditor externo e com o Banco Nacional de Angola, visando o rápido e cabal esclarecimento das dúvidas surgidas”. Ou seja, no início de 2014, a supervisão portuguesa estava a par do seguinte quadro relativo ao BESA:

– O BES tinha uma forte e crescente exposição ao BESA;

– Havia dificuldades no cálculo de imparidades da carteira de crédito do BESA;

– A administração do BESA tinha sido substituída;

– Tinha sido iniciado um processo de reavaliação dos dossiês de crédito do BESA;

– Até final de 2013 havia uma“alegada impossibilidade” de acesso a informação relevante sobre os dossiês de crédito, essencial para o cálculo de imparidades por parte da KPMG Angola.

“A natureza e as implicações potenciais destes elementos teriam justificado uma inquirição formal da KPMG Portugal por parte da supervisão (…) que instasse a auditora ao cumprimento dos deveres de informação”, sublinha o relatório. Mas tal só aconteceu em maio de 2014.

“É de difícil justificação a razão pela qual não foi estabelecido um canal de comunicação célere com o auditor externo e com o Banco Nacional de Angola, visando o rápido e cabal esclarecimento das dúvidas surgidas”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

“Manutenção de Ricardo Salgado em funções não foi a opção adequada”

Com o benefício daquilo que se sabe a posteriori, isto é, sabendo-se que o ring fencing não foi uma estratégia eficaz na proteção do banco, “a Comissão entende que a manutenção de Ricardo Salgado em funções não foi a opção adequada”, pode ler-se no “Relatório Costa Pinto”.

Teria sido preferível uma atuação mais decisiva, logo que ficaram disponíveis elementos que confirmavam a situação de insolvência da vertente não financeira do GES e, em particular, depois de conhecidos os primeiros resultados do exercício ETRICC 2, em novembro/dezembro de 2013”, defendem os autores do documento.

Recorde-se que a partir de setembro de 2013, quando começaram a surgir notícias nos jornais que colocavam em causa os princípios éticos de alguns dos envolvidos, desde logo relativamente ao cumprimento de obrigações fiscais e outras situações, o Banco de Portugal iniciou um processo de avaliação de idoneidade de vários administradores do BES, incluindo Ricardo Salgado. A ideia era, gradualmente, persuadir o gestor a avançar para uma “sucessão controlada” – mas esse processo acabou por ser protelado até depois do aumento de capital que acabaria por acontecer em junho de 2014. Ou seja, mais de nove meses depois do início do processo.

Tendo ficado claro que esses meses foram aproveitados por Ricardo Salgado para se movimentar precisamente no sentido contrário do que se pretendia com a estratégia de ring fencing, o plano saiu furado.

Havia uma certeza: o ring fencing do banco “significaria a falência da ESI e a sua liquidação”, ou seja, levaria à “perda de controlo do grupo ESFG e do BES pela família Espírito Santo a favor dos credores do GES”. Ricardo Salgado e outros simplesmente não aceitaram esse cenário: “a única possibilidade de manter uma posição acionista na vertente não financeira dependia de continuar a assegurar o seu financiamento pela vertente financeira” – e isso, logicamente, era precisamente aquilo que o Banco de Portugal queria impedir.

É certo que extrair Ricardo Salgado do banco seria um processo de gestão complexa e a comissão Costa Pinto chega a admitir que “tal decisão pressupunha a existência de um adequado plano de apoio financeiro público”, para evitar que se gerasse uma “crise de confiança, com eventuais implicações sistémicas”.

Esse “adequado plano de apoio financeiro público” tinha, porém, de ser feito “num quadro jurídico de recapitalização pública bastante mais exigente para os acionistas e obrigacionistas subordinados do que aquele que existia em 2012”, quando outros bancos receberam apoio público proveniente da linha de 12 mil milhões de euros prevista no programa da troika para o setor financeiro.

A evolução das regras europeias, vertidas na legislação nacional, impedia que um eventual apoio ao BES pudesse ser dado nas mesmas condições que tinha sido dado a bancos como o BPI e o BCP, em 2012, na forma dos empréstimos conhecidos como “CoCo’s”, que tinham juros punitivos mas que não implicavam perdas diretas para acionistas e detentores de títulos de dívida.

“A complexidade da decisão da remoção de Ricardo Salgado dos cargos executivos que ocupava no Grupo ESFG e, em particular, no BES era aumentada pelo seu impacto previsível sobre a reputação deste banco, podendo mesmo levar a uma crise de confiança, com eventuais implicações sistémicas. Uma tal decisão pressupunha, por isso, a existência de um adequado plano de apoio financeiro público”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo
Não foi essa a opção tomada. E a comissão liderada por Costa Pinto lembra que teria ocorrido na fase final do programa da troika – os primeiros meses de 2014, “com potenciais implicações na forma como este foi concluído”, isto é, na chamada saída limpa. Evitou-se esse problema mas, depois, com o aumento de capital de junho de 2014 – considerado pela imprensa financeira estrangeira como um dos piores negócios do século para os investidores – acabou por causar-se “danos” na confiança dos investidores estrangeiros “no mercado de capitais português, quer na reputação nacional e internacional dos supervisores”.

“Banco de Portugal autolimitou-se” e partilha de informação com CMVM foi “deficiente”

A venda de produtos financeiros do GES aos balcões do BES ajudou a mascarar os problemas que existiam no grupo e, ao mesmo tempo, metastizou as perdas por um conjunto alargado e variado de clientes – os que vieram a ser conhecidos como “lesados do BES”. E a opinião da comissão liderada por Costa Pinto é que o Banco de Portugal deveria ter feito mais para controlar essa situação, pese embora a CMVM fosse, a partir de 2009, a principal responsável por supervisionar essas vendas de produtos complexos.

A comissão liderada por Costa Pinto considera que o Banco de Portugal se “autolimitou” em demasia nessa supervisão comportamental. É certo que desde o acordo com a CMVM, de 2009, passou a haver uma “sobreposição legal de competências regulatórias e de supervisão entre o Banco de Portugal e a CMVM relativamente à comercialização de instrumentos financeiros”, mas isso “não dispensa o Banco de Portugal de apreciar o modo como a CMVM executa a sua atividade de supervisão e de intervir diretamente sempre que o considere necessário”, sustenta o relatório.

“Ora, havendo sinais claros desde 2012 de que a CMVM não estava a disciplinar adequadamente a comercialização de produtos financeiros aos balcões do BES, com destaque para a venda de obrigações do próprio banco, de UP do fundo ES Liquidez e de papel comercial de entidades não financeiras do GES, o Banco de Portugal tinha a possibilidade de intervir de modo a disciplinar essas vendas”, atira o relatório.

“Havendo sinais claros desde 2012 de que a CMVM não estava a disciplinar adequadamente a comercialização de produtos financeiros aos balcões do BES, com destaque para a venda de obrigações do próprio banco, de UP do fundo ES Liquidez e de papel comercial de entidades não financeiras do GES, o Banco de Portugal tinha a possibilidade de intervir de modo a disciplinar essas vendas”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo
O Banco de Portugal acabaria por tomar medidas, mas “apenas em novembro de 2013 para as obrigações próprias, e em fevereiro de 2014 para a dívida das entidades não financeiras do GES, já no âmbito da implementação da estratégia de ring fencing”. Já foi tarde, advoga a comissão.

Além da questão da inação do Banco de Portugal, que não devia ter acontecido “sem prejuízo da responsabilidade primordial da CMVM nas falhas de supervisão comportamental”, o relatório aponta que também houve uma “deficiente articulação” entre os dois supervisores.

“No que respeita à venda de unidades de participação de fundos mobiliários, o Banco de Portugal conhecia, desde final de 2012, a concentração das suas carteiras em dívida GES, tendo aliás exigido ao BES (em 8 de novembro de 2012) um trabalho específico da KPMG para avaliar a existência de transferência efetiva de risco para fora do grupo financeiro”, diz o relatório, lamentando: “Aparentemente, esta preocupação prudencial não terá sido do conhecimento da CMVM”.

Por outro lado, no que diz respeito ao famoso “papel comercial”, “de acordo com os registos documentais consultados pela Comissão, foi apenas na reunião realizada em 4 de abril de 2014 que responsáveis técnicos do Banco de Portugal deram conta aos seus congéneres da CMVM das suas preocupações prudenciais sobre a questão”. Mas o Banco de Portugal “tinha conhecimento dessas vendas desde outubro de 2013”.

“Em ambas as matérias, UP de fundos geridos pela ESAF e comercialização de papel comercial, a CMVM tinha responsabilidades específicas de supervisão que não desempenhou satisfatoriamente. Mas o Banco de Portugal, para além da autolimitação a que se remeteu desde 2009 em termos de supervisão comportamental na comercialização de produtos financeiros aos balcões dos bancos, não tomou a iniciativa de passar à CMVM informações relevantes”, remata o relatório.

“Banco de Portugal surpreendentemente permitiu uma atuação dilatória da KPMG”

O “Relatório Costa Pinto” reserva, também, um ponto específico para julgar a relação com auditores externos do BES/GES, no caso a PwC e a KPMG – mas se no primeiro caso o Banco de Portugal até ficou bem na fotografia, no segundo o mesmo não acontece.

A PwC foi auditora do BES até 2002, altura em que, numa “decisão que ia contra os interesses comerciais da auditora”, decidiu interromper a ligação ao BES. Porque é que uma auditora havia de prescindir de um cliente tão relevante, que mantinha desde 1992? “O Banco de Portugal procurou avaliar”, diz o relatório, “atuando de forma adequada”.

A auditora terá negado de forma “categórica” que existiam problemas potencialmente relevantes para a supervisão. É por isso que, diz o relatório, são de “particular gravidade” as declarações de José Pereira Alves, sócio responsável pela PwC Portugal, em 2015. Em plena comissão de inquérito ao BES, o responsável “revelou novos elementos sobre os motivos pelos quais em 2002 a PwC cessou o contrato”: afinal, a auditora não estava confortável com o “incumprimento de regras básicas de governação na holding ESFG e no BES, tal como o facto de Ricardo Salgado aumular a presidência de vários órgãos sociais do Grupo, concentrando muita informação e dificultando o seu acesso por parte do auditor externo”.

Já no que diz respeito à KPMG, que sucedeu à PwC como auditor externo, o Banco de Portugal não procedeu tão bem – desde logo, na questão da exposição a partes relacionadas. Foi nesse âmbito que em novembro de 2012 o Banco de Portugal enviou uma carta ao BES a pedir que fosse feito um trabalho (pela KPMG) para “avaliar o grau de transferência efetiva de riscos para fora do Grupo BES, com a colocação nos seus clientes das UP [unidades de participação] dos fundos mobiliários geridos pela ESAF”.

Esse trabalho foi feito em quatro meses, mas “os objetivos pretendidos pelo Banco de Portugal não foram atingidos, por um lado, porque não foi feita uma circularização de clientes e, por outro, porque o foco da análise incidiu nos clientes de gestão discricionária”. Ora, o Banco de Portugal pediu que o trabalho fosse melhorado, “e teve de insistir passados vários meses, mas nunca conseguiu que a avaliação fosse efetuada”.

O que fez o Banco de Portugal, então, “quando confrontado com resultados claramente insuficientes em relação aos objetivos da supervisão”, em março de 2013? O relatório considera que “o Banco de Portugal surpreendentemente permitiu uma atuação dilatória da KPMG, a qual nunca chegou a fornecer as informações solicitadas”.

“Uma atitude mais assertiva e um acompanhamento mais próximo teriam decerto permitido a obtenção da informação indispensável a um acompanhamento e controlo mais eficazes da situação do Grupo”, critica a comissão liderada por João Costa Pinto.

“O Banco de Portugal surpreendentemente permitiu uma atuação dilatória da KPMG, a qual nunca chegou a fornecer as informações solicitadas. Uma atitude mais assertiva e um acompanhamento mais próximo teriam decerto permitido a obtenção da informação indispensável a um acompanhamento e controlo mais eficazes da situação do Grupo”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

A comissão acrescenta, ainda, como já foi referido, que o Banco de Portugal não agiu bem no que diz respeito aos “indícios de que o Banco de Portugal dispunha, a partir do final de 2013 sobre a qualidade da carteira de crédito do BESA”. Esses indícios “eram suficientes para que tivesse sido desencadeada uma inquirição formal da KPMG Portugal, de modo a garantir que esta obtinha da KPMG Angola, em tempo útil, os esclarecimentos necessários para um cabal conhecimento e avaliação dos riscos que o BESA representava para o Grupo e, em particular, para o BES”.

“Esta solicitação só veio a verificar‐se em 30 de maio de 2014, na fase final do processo que levaria à resolução do BES”, remata a comissão.

A falta de um “pensamento jurídico uniforme” entre os vários departamentos do Banco de Portugal

“O caso GES/BES revelou não existir, nesse contexto funcional, um pensamento jurídico uniforme que, de forma consistente, fosse sendo aplicado pelo Conselho de Administração e pelos vários departamentos encarregados da execução das normas do RGICSF”, afirma a comissão. Esta é a crítica que os autores do relatório fazem à organização interna do Banco de Portugal, designadamente no modelo que foi criado pelo ex-governador Carlos Costa.

Em janeiro de 2011, meio ano depois de Carlos Costa suceder a Vítor Constâncio, subdividiu-se o Departamento de Supervisão Bancária em três (supervisão prudencial, supervisão comportamental e ação sancionatória). Depois, no mês seguinte, foi criada a Comissão Especializada para a Supervisão e Estabilidade Financeira (CESEF), uma estrutura à qual cabe identificar riscos sistémicos na banca e que viria a ser “substancialmente alterada” em junho de 2013, na altura em que também foi criado o Departamento de Estabilidade Financeira.

 João Costa Pinto liderou os trabalhos desta comissão que avaliou a atuação do Banco de Portugal no caso BES

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

 

“Não obstante estas melhorias na governance das funções de supervisão e estabilidade financeira, constata‐se que, no caso das funções jurídicas e sem prejuízo de as várias áreas operacionais da supervisão manterem algumas estruturas próprias de apoio jurídico interno, se verificam problemas na organização do interface entre a supervisão e o correspondente apoio jurídico global visando a necessária consistência na aplicação das normas”, atira o relatório Costa Pinto.

Ou seja, geraram-se dificuldades “notórias” que a comissão enumera: na aplicação das normas de idoneidade, na determinação de medidas corretivas previstas no RGICSF, no impedimento de acumulação de cargos e, também, na tomada de medidas que obrigassem, efetivamente, à simplificação da estrutura do grupo BES/GES ou outras. Finalmente, também na “definição da estrutura jurídica da conta escrow imposta no âmbito da estratégia de ring fencing” ficou claro que faltou “um pensamento jurídico uniforme” aplicado de forma “consistente”.

Quem são os autores do “Relatório Costa Pinto”?

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Afastar Salgado mais cedo? “Lei era extremamente limitativa”, afirma ex-diretor-adjunto da supervisão do Banco de Portugal

Domingo, Abril 18th, 2021

Citamos

Eco

Afastar Salgado mais cedo? “Lei era extremamente limitativa”, afirma ex-diretor-adjunto da supervisão do Banco de Portugal

 

Pedro Machado, diretor-adjunto da supervisão do BdP em 2014, diz que o relatório Costa Pinto tem fragilidades e que o BdP atuou de forma “generosamente extensiva” em relação ao que a lei permite.

Carece de fundamento” alegar, como alega o chamado “Relatório Costa Pinto” (divulgado esta semana pelo Observador), que o Banco de Portugal tinha amplas ferramentas legais para afastar Ricardo Salgado mais cedo. Muito pelo contrário, afirmou esta quinta-feira Pedro Machado, que foi diretor-adjunto da supervisão do BdP entre julho de 2013 e outubro de 2014, na comissão parlamentar de inquérito às perdas do Novo Banco. O responsável, que hoje está no Mecanismo Único de Resolução europeia, sublinha que a lei é “extremamente limitativa” naquilo que se podia fazer para afastar alguém e que, mesmo assim, o Banco de Portugal até fez uma interpretação “generosamente extensiva” daquilo que a lei permite.

Essa interpretação “generosamente extensiva” da lei, afirmou Pedro Machado, permitiu fazer duas coisas logo a partir do momento em que começaram a surgir notícias sobre as questões fiscais de Ricardo Salgado e as “comissões” (mais tarde, “liberalidades”) recebidas pelo gestor, no outono de 2013: em primeiro, levar Ricardo Salgado a deixar cair quatro pedidos de registo que tinha feito à supervisão do Banco de Portugal – para entidades como a ESAF, o Banco Best e o BESI – e, além disso, acordar com o Banco de Portugal um plano de sucessão “calendarizado” a concretizar “num curto prazo” (antes do verão de 2014).

Pedro Machado sublinhou que o próprio relatório Costa Pinto tem um capítulo importante sobre as “condicionalidades” à atuação do Banco de Portugal e, tanto nesse capítulo como nas conclusões do trabalho, há uma referência clara à ideia de que afastar Ricardo Salgado de forma súbita poderia ter impacto sobre a estabilidade financeira. E, por outro lado, a legislação tem como objetivo-último a proteção da estabilidade financeira. Ou seja, se o próprio relatório admite um impacto para a estabilidade financeira, como é que se pode sustentar que Ricardo Salgado devia ser afastado mais cedo em nome da estabilidade financeira, perguntou Pedro Machado, questionado pelo deputado Duarte Alves, do PCP.

“O relatório diz que haveria a possibilidade de ter recorrido – não sei bem quando… o relatório também não me parece ser muito claro quanto a isso – para se afastar o dr. Ricardo Salgado”, afirmou Pedro Machado. Mas “é curioso que se ler atentamente o relatório, depois há uma qualificação de que se se afastasse o dr. Ricardo Salgado, assume que haveria um impacto do ponto de vista da estabilidade financeira”, referiu.

Por outro lado, segundo Pedro Machado, o mesmo artigo “arranca justamente do pressuposto de que quando se adotam as medidas do artigo 141.º, é para garantir a estabilidade financeira”. “Parece-me que temos aqui uma contradição insanável, porque eu não posso adotar uma medida que tem como fim proteger um determinado bem, e ao mesmo tempo pôr em causa esse bem”, disse o antigo diretor-adjunto de supervisão do BdP.

Logo quando saíram as primeiras notícias sobre a comissão (ou “liberalidade”) recebida por Ricardo Salgado, “aproveitámos que estavam pendentes esses quatro pedidos de registo e fizemos perguntas relativamente à notícia”, um “conjunto de perguntas tão intrusivo que em março/abril” Ricardo Salgado acabou por renunciar a esses quatro pedidos (evitando um eventual chumbo). Quanto ao BES, a opção foi no sentido de prosseguir o plano de “ring fencing” em curso e acordar com Salgado que sairia antes do verão. Todas essas trocas de informação, todas as cartas, tudo isso está “documentado”, sublinhou o responsável.

O Banco de Portugal nessa fase penso que foi muito para além do que provavelmente poderia ter. Enfim, fez uma interpretação generosamente extensiva do que era o tipo de avaliação que poderia fazer face ao conjunto de situações que estavam previstas na lei, nessa altura”, defendeu Pedro Machado.

O “incidente” entre Fernando Negrão e os deputados do PS

A sessão ficou marcada, também, por um “incidente” entre Fernando Negrão, presidente da comissão, e os deputados do Partido Socialista (João Paulo Correia e Eduardo Barroco de Melo), que levou a longos minutos em que os microfones estiveram desligados enquanto Fernando Negrão repreendeu duramente os deputados socialistas, depois de ter sido acusado por João Paulo Correia de estar a compactuar, “como já tem feito noutras ocasiões”, com a falta de resposta direta por parte dos inquiridos às questões feitas pelo PS.

Eu não sou merecedor” das criticas, gritou Fernando Negrão. O PS tinha perguntado diretamente a Pedro Machado quem tomou a decisão de avançar para a resolução do BES, materializando um “cenário de contingência” que estava a ser preparado desde os últimos dias de junho de 2014. O responsável estava a dar mais contexto sobre a forma como se trabalhou nesse cenário e nas vantagens da decisão tomada naquela situação específica do BES, que caiu fruto do que Pedro Machado considerou ser uma gestão danosa por parte de Ricardo Salgado e outros responsáveis.

Enquanto Eduardo Barroco de Melo ouvia a resposta, João Paulo Correia terá dito (lateralmente) a Fernando Negrão que Pedro Machado não estava a responder diretamente. E o deputado socialista acabou por se virar diretamente para Fernando Negrão, criticando a forma como estava a gerir estes trabalhos e outros anteriores. Foi aí que o caldo se entornou e Fernando Negrão repreendeu os deputados com os microfones desligados.

Pedro Machado acabaria por responder de forma sucinta dizendo que, obviamente, foi o Banco de Portugal porque o Banco de Portugal era a entidade diretamente responsável para tomar uma decisão daquelas (hoje seria o Mecanismo Único de Resolução europeu, onde Pedro Machado agora trabalha em Bruxelas).

Pedro Machado começou no Banco de Portugal a trabalhar nos serviços jurídicos, depois foi com Vítor Gaspar para o Ministério das Finanças (foi seu chefe de gabinete). Quando Gaspar saiu das Finanças, Machado regressou ao Banco de Portugal como adjunto de Luís Costa Ferreira, diretor de supervisão prudencial que já foi ouvido nesta comissão. Ambos estiveram nessas funções até outubro de 2014, altura em que saíram para a consultora PwC. Mais tarde, em 2017, ambos regressariam ao Banco de Portugal, Costa Ferreira para a supervisão e Pedro Machado para diretor dos serviços jurídicos (convidado por Luís Máximo dos Santos, hoje vice-governador).

O responsável disse no parlamento que apenas em 2019 leu o chamado “relatório Costa Pinto”, que analisou a forma como o Banco de Portugal atuou nos anos anteriores ao colapso do BES e que foi concluído em abril de 2015. A sua opinião sobre o relatório é que é “uma opinião” e “não deve ser diabolizado nem mistificado”, afirmou, esta quinta-feira, notando que, na sua análise, “o relatório também tem fragilidades jurídicas”, sobretudo nas conclusões que tira no final.

Entretanto, Pedro Machado foi para o Mecanismo Único de Resolução, numa candidatura totalmente individual e espontânea que recusa por completo ter sido um “prémio” em que Carlos Costa poderia ter tido influência. Aliás, o responsável explicou em detalhe o longo processo de seleção que é feito a nível europeu, que termina com uma aprovação no parlamento europeu, e onde os países de que se é nativo não têm influência.

*Com Lusa

 

Banco de Portugal podia ter feito mais no BES. As críticas violentas do relatório secreto que nunca saiu da gaveta de Carlos Costa

Quarta-feira, Abril 14th, 2021

Citamos

Observador

Banco de Portugal podia ter feito mais no BES. As críticas violentas do relatório secreto que nunca saiu da gaveta de Carlos Costa

O Observador revela em exclusivo o conteúdo do “Relatório Costa Pinto”, escrito pela comissão que apontou as falhas no BES. Documento defende que o Banco de Portugal podia ter feito mais e melhor.

O Banco de Portugal tinha conhecimento dos problemas do Banco Espírito Santo e tinha poderes para fazer mais, melhor e mais cedo – o que, provavelmente, teria mudado o curso da história que levou ao colapso do BES no verão de 2014, que ainda hoje se está a pagar.  Este é o quadro traçado no “Relatório Costa Pinto” — uma auditoria à ação do supervisor cujo acesso tem vindo a ser negado ao público em geral desde há quase seis anos. O Observador leu o documento secreto na íntegra e agora revela as suas conclusões, com as palavras exatas dirigidas a quem geriu o processo que deu lugar à resolução do banco.

Desde a instrumentalização do BES, e dos seus clientes, para financiar o grupo (uma história que começa a seguir à viragem do milénio), passando pelas manobras “dilatórias” para contornar ordens que o supervisor viu e foi permitindo, até à resistência em afastar Ricardo Salgado contra a sua vontade por receio de provocar uma crise sistémica no final do programa de assistência internacional. Sem esquecer o enorme buraco no banco em Angola, que o Banco de Portugal descobriu em data próxima à publicação de notícias sobre o assunto na imprensa portuguesa.

Este é um relatório que foi encomendado por Carlos Costa para fazer uma avaliação independente da atuação do Banco de Portugal (BdP), mas que (quase) não saiu da gaveta do ex-governador. Não foi discutido internamente na instituição – apenas foram tornadas públicas as recomendações do grupo de trabalho, necessariamente mais inócuas e desprovidas da linguagem forte utilizada nas outras quase 500 páginas do relatório. A avaliação à ação do Banco de Portugal usa palavras bem mais duras. No meio das críticas há, também, elogios ao supervisor bancário e farpas a outros reguladores e auditores, e o reconhecimento de constrangimentos do quadro legal que limitaram a intervenção do BdP, sobretudo no poder para retirar idoneidade aos gestores do grupo.

A divulgação deste relatório está, há anos, no centro de uma disputa jurídica que está prestes a chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. E os deputados passaram toda a comissão de inquérito do BES (2014/2015) a exigir – em vão – que este relatório lhes fosse entregue, um pedido que só foi acedido muito recentemente, antes do início da nova comissão de inquérito. Mesmo assim, tantos anos depois, o público continua sem poder ler o documento – mas o Observador revela o que lá está escrito.

“Banco de Portugal nunca sentiu necessidade de utilizar de forma mais estrita os [seus] poderes”

A conclusão não deixa margem para dúvidas: o Banco de Portugal tinha poderes para fazer mais, melhor e mais cedo. Ao longo de vários anos tornaram-se “manifestos” os problemas de governance no Grupo Espírito Santo, com acumulação de funções nos órgãos de gestão do grupo financeiro e em outras sociedades do grupo financeiro e em outras sociedades não-financeiras. Porém, “até fevereiro de 2014 o Banco de Portugal nunca sentiu a necessidade de utilizar de forma mais estrita os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 33.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF)”, lê-se no “Relatório Costa Pinto”.

Esta análise exaustiva aos anos que antecederam o colapso do BES falam de uma “tolerância do Banco de Portugal” em relação a um entrelaçar que se “foi agravando consideravelmente” a partir de 2002. E era “patente para a supervisão do Banco de Portugal”, como demonstra o relatório, que “existia uma acumulação de cargos de administração de sociedades financeiras e não financeiras do Grupo e que estas últimas dependiam de forma muito significativa do financiamento do BES”. Havia um “claro conflito de interesses” que “era do conhecimento do Banco de Portugal”.

A propalada estratégia de ring fencing (quando o Banco de Portugal deu ordens à gestão do BES para não aumentar a exposição ao GES), iniciada nesse mês de fevereiro de 2014, acabou por ser uma reação tardia que só foi posta em marcha “num contexto de constatação de fraude contabilística de grande dimensão na Espírito Santo Internacional (ESI)”.

“Só em fevereiro de 2014, no âmbito da aplicação da chamada estratégia de ring fencing, e já num contexto de constatação de fraude contabilística de grande dimensão na Espírito Santo Internacional (ESI), é que o Banco de Portugal exigiu alterações na governance do grupo financeiro, que tinha como empresa‐mãe a holding Espírito Santo Financial Group (ESFG).”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

Recorde-se que pelo menos desde novembro de 2013 que o Banco de Portugal sabia dos chamados passivos escondidos nas empresas do grupo, como ainda recentemente foi recordado na audição a Carlos Calvário, ex-diretor do Departamento de Risco Global que foi à comissão parlamentar de inquérito no início deste mês.

Como é dito no documento, quando o Banco de Portugal finalmente tomou medidas, em fevereiro de 2014, “algumas semanas depois” o grupo Espírito Santo viria a aprovar alterações aos seus códigos de conduta – o que sugere que uma intervenção num momento anterior poderia ter alterado o curso da história.

O Banco de Portugal poderia ter tido uma atuação mais proativa de reapreciação periódica de cargos autorizados, em vez da aparente não oposição a tais situações”, lê-se no relatório, onde se acrescenta que “uma atuação tempestiva do supervisor teria permitido mitigar os riscos de conflito de interesses decorrentes de acumulações de funções de gestão em entidades não integradas no perímetro de supervisão em base consolidada do Grupo ESFG”.

Nas recomendações que foram tornadas públicas pelo Banco de Portugal, sugere-se um reforço dos poderes que o supervisor podia ter – para obrigar Ricardo Salgado e outros administradores a deixarem de acumular funções – mas também se recomenda que o Banco de Portugal passe a aplicar de forma “estrita” os poderes que tem para evitar esse problema.

Mas é lendo a opinião de João Costa Pinto e dos seus colaboradores que se percebe que essa aplicação do regime existente já poderia ter sido importante – por outras palavras, sem prejuízo de se robustecer a legislação, a comissão não acha que faltassem poderes ao Banco de Portugal para ter agido de forma diferente. Mais tarde, o governador Carlos Costa viria a dizer, em entrevista ao Expresso, que sentia “a mesma frustração de um polícia que chega atrasado ao local do homicídio”.

“Complexidade do GES não foi preocupação prioritária até uns meses antes do colapso”

Além da questão da acumulação de cargos entre empresas financeiras e não-financeiras, o “Relatório Costa Pinto” aponta a própria complexidade de estrutura do GES (Grupo Espírito Santo) como um fator que tornava hercúlea a tarefa de supervisionar o banco e a teia de entidades que gravitavam à sua volta. Por essa razão, o relatório lamenta que não tenha sido “uma preocupação prioritária do Banco de Portugal” obrigar a uma simplificação da estrutura. Só “alguns meses antes do colapso” do banco é que foram movidos esforços relevantes nesse sentido.

Tal como o ponto anterior, esta era uma situação que remontava aos anos de Vítor Constâncio – e o problema estava identificado. Logo em 2009 o Banco de Portugal enviou a Ricardo Salgado uma proposta de intervenção por parte do Banco de Portugal para subir o patamar de consolidação da ESFG (Espírito Santo Financial Group) para uma das holdings de topo do Grupo (ESI ou Espírito Santo Control – ESC). Ora, “esta possibilidade foi frontalmente refutada pelo BES”, que indicou não considerar “razoável” essa mudança “devido à sua complexidade e exigência”.

Tendo o supervisor pedido e o banco rejeitado, em que é que ficámos? Na mesma. “Perante esta recusa, o Banco de Portugal não insistiu no pedido”, aponta o “Relatório Costa Pinto” sobre esta matéria que, podendo parecer um pormenor, poderia ter feito toda a diferença depois: “A preparação de contas consolidadas de todo o GES teria dificultado a continuação da falsificação contabilística então em curso na ESI”, que terá começado logo em 2008, afirma o relatório.

Os anos seguintes trouxeram muita “discussão interna” no Banco de Portugal sobre os perigos da complexidade do grupo e do assento de algumas das suas “pernas” em jurisdições pouco cooperantes. Mas essa “discussão interna não se materializou em nenhuma ação concreta e os constrangimentos mantiveram-se até pouco tempo antes do colapso do BES”, conclui o relatório.

Tendo em conta que o departamento de supervisão do Banco de Portugal manifestava a sua “opinião técnica” de que a complexidade do grupo GES “representava um risco material de supervisão, num banco sistémico para o sistema financeiro português, o Banco de Portugal deveria ter intervindo mais cedo, procurando relocalizar a empresa-mãe em Portugal e promovendo a simplificação da estrutura do grupo financeiro”, o que incluía eliminar “holdings intermédias que não tinham qualquer contributo operacional e que diminuíam a transparência contabilística e prudencial”.

“De acordo com a própria opinião técnica da supervisão, a complexidade do grupo GES representava um risco material de supervisão, num banco sistémico para o sistema financeiro português, o Banco de Portugal deveria ter intervindo mais cedo, procurando relocalizar a empresa‐mãe em Portugal e promovendo a simplificação da estrutura do grupo financeiro”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo
Estava perfeitamente ao alcance do Banco de Portugal a proibição ou limitação de forma estrita do financiamento do BES à ESFG e às filiais para as quais havia dificuldade de acesso a informação”, pode ler-se no relatório, notando que “tal teria evitado o crescimento muito acentuado da exposição às filiais da ESFG no Panamá e na Suíça, que contribuiu muito significativamente para os prejuízos apurados pelo banco”.

“Estratégia de contornar determinações não terá sido interpretada como manifestação da gravíssima situação”

A regra é simples: os bancos não podem assumir riscos que beneficiem pessoas ou entidades que participem nessa decisão. Parece algo óbvio mas não deixa, por isso, de estar claramente proibido nas recomendações do Comité de Basileia de Supervisão Bancária. É claro que o primeiro passo para avaliar se alguém está ou não em conflito de interesses é identificar quem são os beneficiários de uma dada operação. E, pura e simplesmente, em muitos casos o supervisor não sabia quem eram essas pessoas.

“Não obstante o Banco de Portugal ter procurado conhecer, através da estrutura de capital do Grupo, as pessoas singulares com influência dominante nas empresas, a verdade é que nunca conseguiu obter tal informação de forma completamente satisfatória”, pode ler-se no “Relatório Costa Pinto”. A dada altura, em 2011, houve uma iniciativa para obrigar os bancos a dar informação sobre os detentores do capital. Problema: “Esse sistema não foi implementado de forma adequada no BES, sem que isso tivesse sido detetado”.

Sendo uma matéria com tanta “sensibilidade, uma atitude mais proativa do supervisor para determinar quem eram, de facto, as pessoas singulares que dominavam as empresas não financeiras do GES, a que o BES estava exposto, teria permitido uma atuação mais eficaz”, lê-se no “Relatório Costa Pinto”.

O documento conta como, ainda antes, na segunda metade de 2008, o Banco de Portugal “se apercebeu” que quando se subtraía o valor do excesso de grandes riscos aos fundos próprios a Espírito Santo Financial Group ficava em “desrespeito pelo mínimo regulamentar para o rácio de solvabilidade” – passava a ficar com 7,74%, abaixo do mínimo de 9% exigido à entidade.

A partir daí, perante a “insistência” do Banco de Portugal para a redução da exposição a partes relacionadas, “o Grupo ESFG conseguiu ir explorando lacunas na regulamentação, nomeadamente permitindo a instrumentalização das companhias de seguros do próprio grupo e a utilização da base de clientes para colocação de dívida da vertente não financeira”. Em 2012, o Banco de Portugal viria a detetar um desses esquemas, envolvendo a companhia de seguros BES Vida, e “reprimiu” a instituição.

Mas teria sido importante fazer mais do que detetar e “reprimir”. As “estratégias” levadas a cabo pelo ESFG, “no sentido de contornar as determinações do Banco de Portugal, não terão sido interpretadas, na altura, como manifestação da gravíssima situação das holdings não financeiras do grupo”. Isto enquanto o grupo ia “conseguindo protelar por largos meses a aplicação efetiva das determinações do Banco de Portugal”.

“Pelo menos até ao verão de 2013, a repetição sucessiva de esquemas para contornar os limites prudenciais à exposição a partes relacionadas não terá sido interpretada pelo Banco de Portugal como uma séria violação das práticas sãs e prudentes de gestão de um grupo financeiro”, pode ler-se no “Relatório Costa Pinto”.

“Pelo menos até ao verão de 2013, a repetição sucessiva de esquemas para contornar os limites prudenciais à exposição a partes relacionadas não terá sido interpretada pelo Banco de Portugal como uma séria violação das práticas sãs e prudentes de gestão de um grupo financeiro”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

E mesmo aí, em 2013, quando o BES andava a colocar títulos de dívida de empresas não-financeiras do Grupo, em muitos casos retratando-os junto dos clientes como depósitos ou de remuneração garantida, a atuação do Banco de Portugal ficou aquém do que teria sido desejável. “O Banco de Portugal proibiu a comercialização pelo BES de títulos de dívida de empresas não financeiras do Grupo em fevereiro de 2014, mas poderia tê‐lo feito mais cedo no exercício dos poderes de supervisão comportamental, e também prudencial, sobre esse tipo de operações, que decorrem do RGICSF”.

Por outro lado, há a questão do exercício de validação da efetiva passagem de risco para os clientes de retalho, levada a cabo pela KPMG em final de 2012 e início de 2013. “O Banco de Portugal deveria ter liderado o processo diretamente junto do auditor externo, não permitindo que toda a comunicação fosse feita por intermédio do BES e, uma vez que a análise não foi suficientemente conclusiva, deveria ter sido solicitado um novo exercício, preferivelmente através de outro auditor externo”.

Finalmente, o relatório critica a forma como o Banco de Portugal levou a cabo a chamada estratégia de ring fencing (anel de proteção) do banco em relação ao grupo. É sabido que esse facto limitou a margem de manobra dos responsáveis do BES/GES, mas mesmo aí o Banco de Portugal introduziu um “procedimentos de controlo” para acompanhar a execução das medidas que se mostraram “insuficientes” e “o Grupo ESFG/BES voltou a recorrer (tal como tinha vindo a fazer em anos anteriores) a esquemas com diferentes graus de irregularidade para camuflar o aumento continuado da exposição à vertente não financeira, ao mesmo tempo que criava alguma ilusão de compliance”, isto é, de cumprimento.

Um problema concreto na forma como o ring fencing foi feito é que não se assegurou “um controlo independente do grupo das condições de movimentação da designada conta escrow (para onde seriam canalizados os recursos libertados pelas entidades da vertente não financeira, com vista ao reembolso dos clientes de retalho detentores de dívida dessas entidades)”.

Paradoxalmente, essa conta dedicada foi criada no próprio BES. E nem foi celebrado um contrato escrito para reger a forma como essa conta ia ser gerida – e, a propósito, devia ter-se garantido que a conta ficava “num banco independente, nunca o próprio BES”. Assim, “não é de admirar que a conta escrow não tenha cumprido a função pretendida e que os montantes que a alimentaram tenham sido utilizados de forma inadequada, ficando por pagar uma larga parcela da dívida da ESI a clientes do retalho do BES”.

A realidade, descrita pelo “Relatório Costa Pinto”, é que era uma evidência que “o sucesso da estratégia de ring fencing implicaria a falência da ESI e a sua liquidação, com a consequente perda de controlo da holding ESFG e do BES pela família Espírito Santo a favor dos credores do Grupo”. Porém, “para a família, a única esperança de manter uma posição acionista no grupo seria financiá‐lo à custa da vertente financeira, de que o BES era o sustentáculo, desrespeitando as determinações do Banco de Portugal”.

Sinais, sinais e mais sinais vindos de Angola. E o Banco de Portugal sem os ver

O Banco de Portugal falhou sob vários aspetos na identificação e interpretação de sinais de alerta quanto ao forte e rápido aumento da exposição do BES à sua filial angolana, o BESA; só “muito tarde” se apercebeu da gravidade das repercussões que esta exposição teria (e teve) para o banco português e, mais grave, mostrou uma atitude de “passividade” na reação a estes sinais, demorando dez meses a fazer uma inquirição formal ao auditor externo do banco, a KPMG Portugal, sobre as possíveis perdas associadas à carteira de crédito do BESA. Em traços largos, é assim que a comissão orientada por João Costa Pinto caracteriza a ação do supervisor nesta matéria.

A exposição do BES ao BES Angola (BESA), associada a uma “extrema falta de qualidade” da carteira de crédito do banco angolano e ao facto de o Estado angolano não ter acedido ao pedido do Banco de Portugal para que prestasse uma confirmação firme da garantia estatal sobre esta mesma carteira de crédito, foram “fatores fundamentais” para o colapso do BES. Mas houve, ao longo dos anos, sinais que poderiam ter “suscitado a atenção” do Banco de Portugal. E que deveriam ter levado o supervisor a agir de forma determinante.

O relatório da comissão liderada por Costa Pinto lista vários:

Entre dezembro de 2007 e dezembro de 2008, a exposição do BES ao BESA “subiu fortemente”, passando de 20 milhões para cerca de 1.750 milhões de euros (26% dos fundos próprios elegíveis do Grupo BES). Isto através de uma linha de “apoio à liquidez”. A exposição, acrescenta o relatório, continuou sempre a subir, atingindo 2.076 milhões de euros em 2010 e 3.300 milhões de euros em junho de 2014 (86% dos fundos próprios, devido aos prejuízos do primeiro semestre desse ano). Para dar a ideia da dimensão deste número: o segundo banco português com maior exposição a uma filial sua em Angola era o BCP, com um valor de 78 milhões de euros em dezembro de 2013.

Para dar outra ideia da dimensão, a linha de apoio à liquidez em causa, do BES para o BESA, acabaria por ser “integralmente provisionada no balanço que acompanhou a medida de resolução tomada pelo Banco de Portugal em 3 de agosto de 2014. E este provisionamento “representou mais de metade” das necessidades de financiamento totais identificadas para o Novo Banco.

O crédito concedido pelo BESA também cresceu “rapidamente” desde 2007, passando de 570 milhões em dezembro desse ano para 1.700 milhões de euros no final de 2009. Em dezembro de 2013, esse valor atingia já os 5.700 milhões de euros. Estes créditos de 5.700 milhões no BESA (sustentados em grande medida pela casa-mãe, o BES) foram concedidos sem garantia ainda sob a tutela do então chairman do banco, Álvaro Sobrinho. E ficaram conhecidos como “o buraco no BESA”.

Face ao risco de o BES vir a ter de reconhecer as imparidades do BESA no seu balanço, Ricardo Salgado conseguiu do então presidente angolano José Eduardo dos Santos uma garantia estatal de 5,7 mil milhões de dólares para cobrir o risco de incumprimento dos clientes do banco angolano. Mas o Banco de Portugal nunca aceitou a elegibilidade dessa garantia para efeitos prudenciais, por desconhecer a identidade dos beneficiários dos créditos do BESA – uma decisão que a comissão de Costa Pinto considera ter sido a correta.

Já em 2009, o BESA mostrava um rácio de transformação (empréstimos face aos depósitos) “muito mais elevado” do que o das filiais dos outros bancos portugueses em Angola. Ou seja, segundo a comissão, já traduzia “um modelo de negócio claramente de maior risco”, uma vez que se baseava “no financiamento junto da casa-mãe” em vez da captação de depósitos em Angola.

Só que o Banco de Portugal não fez uma análise às várias filiais que integravam o grupo financeiro, apenas fazia uma análise das contas consolidadas. Ou seja, como nota a comissão, “a supervisão perdeu a perspetiva das principais contrapartes do BES no seio do próprio grupo, em particular do BESA, com a agravante de que este estava sediado numa jurisdição em que era difícil obter informações que permitissem efetuar uma avaliação adequada do risco”.

“Ao não analisar as relações intra‐grupo financeiro, a supervisão perdeu a perspetiva das principais contrapartes do BES no seio do próprio grupo, em particular do BESA, com a agravante de que este estava sediado numa jurisdição em que era difícil obter informações que permitissem efetuar uma avaliação adequada do risco.”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

Mas deveria ter feito esse “acompanhamento efetivo”. Tanto mais que esse “acompanhamento e análise de rotina de alguns indicadores-chave, em base individual para cada entidade do grupo, teriam permitido identificar, em tempo útil, os sinais claros de alerta e atuar sobre as suas causas”.

Pior. A comissão orientada por João Costa Pinto sublinha que fica “claro que só muito tarde a supervisão se apercebeu da gravidade dos problemas que afetavam a carteira de crédito do BESA” – em data próxima à publicação de notícias sobre o assunto na imprensa portuguesa. Mas também nota um paradoxo. Apesar de já existirem “indícios de problemas potenciais” com a avaliação da carteira do BESA – primeiro em 3 de julho de 2013, mediante um relatório de controlo interno do Espírito Santo Financial Group (ESFG) e depois em novembro do mesmo ano, numa reunião com a KPMG Portugal – só em maio de 2014, quase 10 meses após o primeiro sinal, é que o Banco de Portugal solicitou “explicitamente à KPMG Portugal uma informação sobre as possíveis perdas associadas a essa carteira”.

Nota a comissão de Costa Pinto que, especialmente depois da reunião de novembro com a KPMG, “é de difícil justificação a razão pela qual não foi estabelecido um canal de comunicação célere com o auditor externo e com o Banco Nacional de Angola, visando o rápido e cabal esclarecimento das dúvidas surgidas”. Ou seja, no início de 2014, a supervisão portuguesa estava a par do seguinte quadro relativo ao BESA:

– O BES tinha uma forte e crescente exposição ao BESA;

– Havia dificuldades no cálculo de imparidades da carteira de crédito do BESA;

– A administração do BESA tinha sido substituída;

– Tinha sido iniciado um processo de reavaliação dos dossiês de crédito do BESA;

– Até final de 2013 havia uma“alegada impossibilidade” de acesso a informação relevante sobre os dossiês de crédito, essencial para o cálculo de imparidades por parte da KPMG Angola.

“A natureza e as implicações potenciais destes elementos teriam justificado uma inquirição formal da KPMG Portugal por parte da supervisão (…) que instasse a auditora ao cumprimento dos deveres de informação”, sublinha o relatório. Mas tal só aconteceu em maio de 2014.

“É de difícil justificação a razão pela qual não foi estabelecido um canal de comunicação célere com o auditor externo e com o Banco Nacional de Angola, visando o rápido e cabal esclarecimento das dúvidas surgidas”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

“Manutenção de Ricardo Salgado em funções não foi a opção adequada”

Com o benefício daquilo que se sabe a posteriori, isto é, sabendo-se que o ring fencing não foi uma estratégia eficaz na proteção do banco, “a Comissão entende que a manutenção de Ricardo Salgado em funções não foi a opção adequada”, pode ler-se no “Relatório Costa Pinto”.

Teria sido preferível uma atuação mais decisiva, logo que ficaram disponíveis elementos que confirmavam a situação de insolvência da vertente não financeira do GES e, em particular, depois de conhecidos os primeiros resultados do exercício ETRICC 2, em novembro/dezembro de 2013”, defendem os autores do documento.

Recorde-se que a partir de setembro de 2013, quando começaram a surgir notícias nos jornais que colocavam em causa os princípios éticos de alguns dos envolvidos, desde logo relativamente ao cumprimento de obrigações fiscais e outras situações, o Banco de Portugal iniciou um processo de avaliação de idoneidade de vários administradores do BES, incluindo Ricardo Salgado. A ideia era, gradualmente, persuadir o gestor a avançar para uma “sucessão controlada” – mas esse processo acabou por ser protelado até depois do aumento de capital que acabaria por acontecer em junho de 2014. Ou seja, mais de nove meses depois do início do processo.

Tendo ficado claro que esses meses foram aproveitados por Ricardo Salgado para se movimentar precisamente no sentido contrário do que se pretendia com a estratégia de ring fencing, o plano saiu furado.

Havia uma certeza: o ring fencing do banco “significaria a falência da ESI e a sua liquidação”, ou seja, levaria à “perda de controlo do grupo ESFG e do BES pela família Espírito Santo a favor dos credores do GES”. Ricardo Salgado e outros simplesmente não aceitaram esse cenário: “a única possibilidade de manter uma posição acionista na vertente não financeira dependia de continuar a assegurar o seu financiamento pela vertente financeira” – e isso, logicamente, era precisamente aquilo que o Banco de Portugal queria impedir.

É certo que extrair Ricardo Salgado do banco seria um processo de gestão complexa e a comissão Costa Pinto chega a admitir que “tal decisão pressupunha a existência de um adequado plano de apoio financeiro público”, para evitar que se gerasse uma “crise de confiança, com eventuais implicações sistémicas”.

Esse “adequado plano de apoio financeiro público” tinha, porém, de ser feito “num quadro jurídico de recapitalização pública bastante mais exigente para os acionistas e obrigacionistas subordinados do que aquele que existia em 2012”, quando outros bancos receberam apoio público proveniente da linha de 12 mil milhões de euros prevista no programa da troika para o setor financeiro.

A evolução das regras europeias, vertidas na legislação nacional, impedia que um eventual apoio ao BES pudesse ser dado nas mesmas condições que tinha sido dado a bancos como o BPI e o BCP, em 2012, na forma dos empréstimos conhecidos como “CoCo’s”, que tinham juros punitivos mas que não implicavam perdas diretas para acionistas e detentores de títulos de dívida.

“A complexidade da decisão da remoção de Ricardo Salgado dos cargos executivos que ocupava no Grupo ESFG e, em particular, no BES era aumentada pelo seu impacto previsível sobre a reputação deste banco, podendo mesmo levar a uma crise de confiança, com eventuais implicações sistémicas. Uma tal decisão pressupunha, por isso, a existência de um adequado plano de apoio financeiro público”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

Não foi essa a opção tomada. E a comissão liderada por Costa Pinto lembra que teria ocorrido na fase final do programa da troika – os primeiros meses de 2014, “com potenciais implicações na forma como este foi concluído”, isto é, na chamada saída limpa. Evitou-se esse problema mas, depois, com o aumento de capital de junho de 2014 – considerado pela imprensa financeira estrangeira como um dos piores negócios do século para os investidores – acabou por causar-se “danos” na confiança dos investidores estrangeiros “no mercado de capitais português, quer na reputação nacional e internacional dos supervisores”.

“Banco de Portugal autolimitou-se” e partilha de informação com CMVM foi “deficiente”

A venda de produtos financeiros do GES aos balcões do BES ajudou a mascarar os problemas que existiam no grupo e, ao mesmo tempo, metastizou as perdas por um conjunto alargado e variado de clientes – os que vieram a ser conhecidos como “lesados do BES”. E a opinião da comissão liderada por Costa Pinto é que o Banco de Portugal deveria ter feito mais para controlar essa situação, pese embora a CMVM fosse, a partir de 2009, a principal responsável por supervisionar essas vendas de produtos complexos.

A comissão liderada por Costa Pinto considera que o Banco de Portugal se “autolimitou” em demasia nessa supervisão comportamental. É certo que desde o acordo com a CMVM, de 2009, passou a haver uma “sobreposição legal de competências regulatórias e de supervisão entre o Banco de Portugal e a CMVM relativamente à comercialização de instrumentos financeiros”, mas isso “não dispensa o Banco de Portugal de apreciar o modo como a CMVM executa a sua atividade de supervisão e de intervir diretamente sempre que o considere necessário”, sustenta o relatório.

“Ora, havendo sinais claros desde 2012 de que a CMVM não estava a disciplinar adequadamente a comercialização de produtos financeiros aos balcões do BES, com destaque para a venda de obrigações do próprio banco, de UP do fundo ES Liquidez e de papel comercial de entidades não financeiras do GES, o Banco de Portugal tinha a possibilidade de intervir de modo a disciplinar essas vendas”, atira o relatório.

“Havendo sinais claros desde 2012 de que a CMVM não estava a disciplinar adequadamente a comercialização de produtos financeiros aos balcões do BES, com destaque para a venda de obrigações do próprio banco, de UP do fundo ES Liquidez e de papel comercial de entidades não financeiras do GES, o Banco de Portugal tinha a possibilidade de intervir de modo a disciplinar essas vendas”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

O Banco de Portugal acabaria por tomar medidas, mas “apenas em novembro de 2013 para as obrigações próprias, e em fevereiro de 2014 para a dívida das entidades não financeiras do GES, já no âmbito da implementação da estratégia de ring fencing”. Já foi tarde, advoga a comissão.

Além da questão da inação do Banco de Portugal, que não devia ter acontecido “sem prejuízo da responsabilidade primordial da CMVM nas falhas de supervisão comportamental”, o relatório aponta que também houve uma “deficiente articulação” entre os dois supervisores.

“No que respeita à venda de unidades de participação de fundos mobiliários, o Banco de Portugal conhecia, desde final de 2012, a concentração das suas carteiras em dívida GES, tendo aliás exigido ao BES (em 8 de novembro de 2012) um trabalho específico da KPMG para avaliar a existência de transferência efetiva de risco para fora do grupo financeiro”, diz o relatório, lamentando: “Aparentemente, esta preocupação prudencial não terá sido do conhecimento da CMVM”.

Por outro lado, no que diz respeito ao famoso “papel comercial”, “de acordo com os registos documentais consultados pela Comissão, foi apenas na reunião realizada em 4 de abril de 2014 que responsáveis técnicos do Banco de Portugal deram conta aos seus congéneres da CMVM das suas preocupações prudenciais sobre a questão”. Mas o Banco de Portugal “tinha conhecimento dessas vendas desde outubro de 2013”.

“Em ambas as matérias, UP de fundos geridos pela ESAF e comercialização de papel comercial, a CMVM tinha responsabilidades específicas de supervisão que não desempenhou satisfatoriamente. Mas o Banco de Portugal, para além da autolimitação a que se remeteu desde 2009 em termos de supervisão comportamental na comercialização de produtos financeiros aos balcões dos bancos, não tomou a iniciativa de passar à CMVM informações relevantes”, remata o relatório.

“Banco de Portugal surpreendentemente permitiu uma atuação dilatória da KPMG”

O “Relatório Costa Pinto” reserva, também, um ponto específico para julgar a relação com auditores externos do BES/GES, no caso a PwC e a KPMG – mas se no primeiro caso o Banco de Portugal até ficou bem na fotografia, no segundo o mesmo não acontece.

A PwC foi auditora do BES até 2002, altura em que, numa “decisão que ia contra os interesses comerciais da auditora”, decidiu interromper a ligação ao BES. Porque é que uma auditora havia de prescindir de um cliente tão relevante, que mantinha desde 1992? “O Banco de Portugal procurou avaliar”, diz o relatório, “atuando de forma adequada”.

A auditora terá negado de forma “categórica” que existiam problemas potencialmente relevantes para a supervisão. É por isso que, diz o relatório, são de “particular gravidade” as declarações de José Pereira Alves, sócio responsável pela PwC Portugal, em 2015. Em plena comissão de inquérito ao BES, o responsável “revelou novos elementos sobre os motivos pelos quais em 2002 a PwC cessou o contrato”: afinal, a auditora não estava confortável com o “incumprimento de regras básicas de governação na holding ESFG e no BES, tal como o facto de Ricardo Salgado aumular a presidência de vários órgãos sociais do Grupo, concentrando muita informação e dificultando o seu acesso por parte do auditor externo”.

 No que diz respeito à KPMG, que sucedeu à PwC como auditor externo, o Banco de Portugal não procedeu tão bem – desde logo, na questão da exposição a partes relacionadas

WALLACE WOON/EPA

 

Já no que diz respeito à KPMG, que sucedeu à PwC como auditor externo, o Banco de Portugal não procedeu tão bem – desde logo, na questão da exposição a partes relacionadas. Foi nesse âmbito que em novembro de 2012 o Banco de Portugal enviou uma carta ao BES a pedir que fosse feito um trabalho (pela KPMG) para “avaliar o grau de transferência efetiva de riscos para fora do Grupo BES, com a colocação nos seus clientes das UP [unidades de participação] dos fundos mobiliários geridos pela ESAF”.

Esse trabalho foi feito em quatro meses, mas “os objetivos pretendidos pelo Banco de Portugal não foram atingidos, por um lado, porque não foi feita uma circularização de clientes e, por outro, porque o foco da análise incidiu nos clientes de gestão discricionária”. Ora, o Banco de Portugal pediu que o trabalho fosse melhorado, “e teve de insistir passados vários meses, mas nunca conseguiu que a avaliação fosse efetuada”.

O que fez o Banco de Portugal, então, “quando confrontado com resultados claramente insuficientes em relação aos objetivos da supervisão”, em março de 2013? O relatório considera que “o Banco de Portugal surpreendentemente permitiu uma atuação dilatória da KPMG, a qual nunca chegou a fornecer as informações solicitadas”.

“Uma atitude mais assertiva e um acompanhamento mais próximo teriam decerto permitido a obtenção da informação indispensável a um acompanhamento e controlo mais eficazes da situação do Grupo”, critica a comissão liderada por João Costa Pinto.

“O Banco de Portugal surpreendentemente permitiu uma atuação dilatória da KPMG, a qual nunca chegou a fornecer as informações solicitadas. Uma atitude mais assertiva e um acompanhamento mais próximo teriam decerto permitido a obtenção da informação indispensável a um acompanhamento e controlo mais eficazes da situação do Grupo”
Relatório final da Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo

A comissão acrescenta, ainda, como já foi referido, que o Banco de Portugal não agiu bem no que diz respeito aos “indícios de que o Banco de Portugal dispunha, a partir do final de 2013 sobre a qualidade da carteira de crédito do BESA”. Esses indícios “eram suficientes para que tivesse sido desencadeada uma inquirição formal da KPMG Portugal, de modo a garantir que esta obtinha da KPMG Angola, em tempo útil, os esclarecimentos necessários para um cabal conhecimento e avaliação dos riscos que o BESA representava para o Grupo e, em particular, para o BES”.

“Esta solicitação só veio a verificar‐se em 30 de maio de 2014, na fase final do processo que levaria à resolução do BES”, remata a comissão.

A falta de um “pensamento jurídico uniforme” entre os vários departamentos do Banco de Portugal

“O caso GES/BES revelou não existir, nesse contexto funcional, um pensamento jurídico uniforme que, de forma consistente, fosse sendo aplicado pelo Conselho de Administração e pelos vários departamentos encarregados da execução das normas do RGICSF”, afirma a comissão. Esta é a crítica que os autores do relatório fazem à organização interna do Banco de Portugal, designadamente no modelo que foi criado pelo ex-governador Carlos Costa.

Em janeiro de 2011, meio ano depois de Carlos Costa suceder a Vítor Constâncio, subdividiu-se o Departamento de Supervisão Bancária em três (supervisão prudencial, supervisão comportamental e ação sancionatória). Depois, no mês seguinte, foi criada a Comissão Especializada para a Supervisão e Estabilidade Financeira (CESEF), uma estrutura à qual cabe identificar riscos sistémicos na banca e que viria a ser “substancialmente alterada” em junho de 2013, na altura em que também foi criado o Departamento de Estabilidade Financeira.

 

“Não obstante estas melhorias na governance das funções de supervisão e estabilidade financeira, constata‐se que, no caso das funções jurídicas e sem prejuízo de as várias áreas operacionais da supervisão manterem algumas estruturas próprias de apoio jurídico interno, se verificam problemas na organização do interface entre a supervisão e o correspondente apoio jurídico global visando a necessária consistência na aplicação das normas”, atira o relatório Costa Pinto.

Ou seja, geraram-se dificuldades “notórias” que a comissão enumera: na aplicação das normas de idoneidade, na determinação de medidas corretivas previstas no RGICSF, no impedimento de acumulação de cargos e, também, na tomada de medidas que obrigassem, efetivamente, à simplificação da estrutura do grupo BES/GES ou outras. Finalmente, também na “definição da estrutura jurídica da conta escrow imposta no âmbito da estratégia de ring fencing” ficou claro que faltou “um pensamento jurídico uniforme” aplicado de forma “consistente”.

uem são os autores do “Relatório Costa Pinto”?

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Sérgio Monteiro recebeu €450 mil para apoiar venda do Novo Banco

Quarta-feira, Abril 14th, 2021

Citamos

Expresso

Banco de Portugal pagou quase meio milhão pelo apoio que antigo governante deu entre 2015 e 2017

Sérgio Monteiro, que foi secretário de Estado do Governo de Pedro Passos Coelho, auferiu uma remuneração global de 450 mil euros pelos 26 meses (entre 2015 e 2017) em que esteve a trabalhar com o Banco de Portugal na assessoria à venda do Novo Banco.

“O valor global é de 450 mil euros, o que dá, para os 26 meses, uma média de 17,5 mil euros brutos, multiplicado por 12 meses. Não era contrato de trabalho”, respondeu Sérgio Monteiro na audição desta terça-feira, 13 de abril, na comissão parlamentar de inquérito às perdas do Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução.

O montante agora revelado pelo antigo consultor do Banco de Portugal é inferior aos mais de 500 mil euros que constam dos contratos publicados no portal Base. “Houve alguns contratos que não foram executados, foram revistos em baixa”, justificou. O valor mensal que lhe foi pago era o equivalente à média que auferia enquanto diretor (e administrador) do banco de investimento da Caixa Geral de Depósitos, onde estava antes de, em 2011, ir para o Governo de Passos Coelho.

Sérgio Monteiro revelou ter sido procurado pela autoridade da banca para ter uma conversa com o então governador Carlos Costa e pelo administrador Hélder Rosalino, que tinha sido secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no mesmo Governo que Monteiro integrou como secretário de Estado dos Transportes. A conversa aconteceu nos últimos meses de 2015, depois de o Banco de Portugal ter desistido da venda da participação de 100% do Fundo de Resolução no Novo Banco no processo que acabou com três ofertas (Anbang, Apollo e Fosun) que não satisfizeram o supervisor.

No fim de 2015 foi iniciado um novo processo de venda. “Pediram-me que pudesse fazer a coordenação operacional de uma equipa que já existia e levar a cabo o objetivo de vender, na modalidade que fosse decidida posteriormente”, disse Sérgio Monteiro aos deputados – numa audição em que, antes de responder aos deputados, quis evocar a memória dos políticos recentemente falecidos Almeida Henriques, seu colega no Governo de Passos Coelho, e Jorge Coelho.

O processo de alienação do Novo Banco que Sérgio Monteiro apoiou concluiu-se com a venda de 75% do capital à Lone Star em outubro de 2017, por zero euros, mas com o compromisso de injeção de mil milhões de euros no banco pelo grupo americano. Nessa altura, disse o antigo governante, “as necessidades de capital ficaram substancialmente cobertas aquando da venda”. Necessidades que, revelou, começaram logo a existir quando se inteirou do dossiê Novo Banco, em 2015.

Apesar dessa cobertura, a venda foi concretizada com a constituição do mecanismo de capital contingente, que abria a porta a que o Fundo de Resolução pudesse colocar até 3,89 mil milhões de euros para cobrir perdas de um determinado conjunto de ativos pelos quais a Lone Star não se quis responsabilizar na totalidade, e o efeito dessas perdas nos rácios de capital.

Neste processo, o Deutsche Bank foi contratado pelo Banco de Portugal como assessor financeiro, em que o contrato em causa tinha um valor de 3,5 milhões de euros – ainda assim, inferior aos 5 milhões pagos ao BNP Paribas pelo processo falhado.