Contabilidade manipulada e falso contrato laboral: inspector tributário revela esquemas no julgamento de Ricardo Salgado

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Público
Paulo Silva está a depor no Campus da Justiça, em Lisboa, para explicar como ex-banqueiro se apropriou de 10,6 milhões do GES.
O inspector tributário Paulo Silva, que participou nas investigações da Operação Marquês, expôs esta quinta-feira de manhã em tribunal, no julgamento de Ricardo Salgado, os alegados esquemas a que recorria o ex-banqueiro para desviar dinheiro do Grupo Espírito Santo em proveito próprio. Ricardo Salgado – que os juízes do Campus da Justiça, em Lisboa, dispensaram de estar presente em tribunal devido à pandemia e aos seus quase 77 anos – responde pela apropriação de 10,6 milhões de euros e por três crimes de abuso de confiança. Paulo Silva, que está também envolvido na investigação ao presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, descreveu o circuito do dinheiro entre o chamado “saco azul” do Grupo Espírito Santo, a sociedade ES Enterprises e outra sociedade offshore controlada por Ricardo Salgado, nomeadamente a Begolino, sediada no Panamá. “A ES Enterprises tinha um registo contabilístico peculiar” que contrariava todas as normas internacionais, explicou o inspector tributário. Em vez de serem registados como passivos, os avultados empréstimos que recebia de outras firmas eram contabilizados como activos negativos. Quando estas somas rumavam a outras paragens, “o saldo final ficava a zero”, resumiu. Segundo o mesmo especialista, Ricardo Salgado usou parte do dinheiro destas transacções – pelo menos quatro milhões – para comprar acções da EDP durante a reprivatização de 2011, tendo adquirido dois milhões de acções da empresa que mais tarde viria a tornar-se dos chineses Three Gorges. A sociedade ES Enterprises foi também responsável pelo pagamento a Hélder Bataglia, o luso-angolano sócio da Escom em Angola, de 15 milhões de euros a título de honorários, destinados alegadamente a pagar os serviços que este lhe prestou na obtenção de direitos de exploração de petróleo que viessem a ser objecto de concessão, nomeadamente na região do Soyo, quer na exploração de quaisquer direitos atribuídos através de concessões na República do Congo, quer na identificação e negociações de negócios imobiliário e ainda na expansão do sector financeiro do GES em África. Porém, segundo Paulo Silva, o contrato de trabalho firmado entre a ES Enterprises e Hélder Bataglia era fictício, servindo apenas para servir de álibi às entradas de dinheiro nas contas bancárias deste último, que, por seu turno, era depois remetido para a sociedade offshore do então “Dono Disto Tudo”. “A ES Enterprises não tinha quaisquer negócios. Hélder Bataglia estava envolvido na exploração de poços de petróleo mas através da Escom”, garantiu o inspector tributário, que mencionou ainda as vultuosas transferências efectuadas  desta empresa para  Zeinal Bava e Henrique Granadeiro. Mas o juiz de instrução Ivo Rosa descartou, na fase anterior deste processo, a tese do Ministério Público de que o “Dono Disto Tudo” havia corrompido estes dois dirigentes da Portugal Telecom.  Ricardo Salgado alega que o dinheiro que lhe chegou às contas bancárias via ES Enterprises era pura e simplesmente um empréstimo pessoal pelo qual até lhe eram cobrados juros, que apenas deixou de pagar quando o BES entrou em falência e as suas contas foram bloqueadas. E que este não era, de resto, o primeiro empréstimo do género que recebeu desta entidade. Também pretende demonstrar em tribunal que outros dirigentes do GES ordenaram transferências através da ES Enterprises: José Manuel Espírito Santo, José Castella, Ricardo Abecassis, Manuel Fernando Espírito Santo e Mário Mosqueira do Amaral. O ex-banqueiro propôs à Justiça portuguesa devolver o dinheiro de que alegadamente se apropriou em troca de ficar com o cadastro limpo, possibilidade prevista numa disposição do Código Penal. Porém, quer fazê-lo à custa do dinheiro e dos bens arrestados noutros processos que correm contra si: o do colapso do BES e o Monte Branco. “Prova plantada” Confrontado pelo advogado de Ricardo Salgado, já da parte da tarde, sobre um documento particular assinado por este banqueiro e pelo também banqueiro Hélder Bataglia, em que o segundo reconhecia dever 2,75 milhões de euros ao primeiro, o inspector tributário garantiu não ter dúvidas de se tratar de uma prova forjada, destinada a ser encontrada pelas autoridades por forma a dar uma aparência de legalidade aos movimentos bancários entre ambos.  No documento encontrado num cofre em buscas realizadas em 2016 a uma casa de Hélder Bataglia em Alfama, o patrão da Escom confessa-se devedor daquela quantia, por via de um alegado empréstimo de dois milhões que lhe teria sido feito por Salgado em 1999, e cujos juros tinham feito aumentar mais 750 mil euros.  Como em 2016 Bataglia já sabia que estava a ser alvo da curiosidade das autoridades, os investigadores da Operação Marquês entendem que o documento – que não foi alvo de reconhecimento notarial – foi fabricado para justificar transferências bancárias que tinham afinal propósitos criminosos. “É um documento sui generis, uma quitação entre dois banqueiros”, observou o inspector tributário. Para explicar depois por que razão os investigadores não lhe atribuíram significado: “Era uma prova plantada.”

 

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