Discussão acesa no Banco de Portugal associou Montepio ao caso BES

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João Talone e Costa Pinto confrontaram cúpula do Banco de Portugal, que desvalorizou avisos dos dois conselheiros. Talone sugeriu a interrupção imediata da venda de produtos de subscrição mutualista aos balcões do Banco Montepio

Carlos Costa e Elisa Ferreira foram confrontados, em reunião do Banco de Portugal de Março de 2018, com o comentário de João Talone de que o Montepio “se assemelhava a um esquema Ponzi”, comparável ao BES. Uma denúncia que agitou a cúpula do supervisor.

No final de Março de 2018, dois membros do conselho consultivo do Banco de Portugal (BdP), João Talone, indicado pelo Governo, e João Costa Pinto, na qualidade de presidente da comissão de auditoria, colocaram o governador Carlos Costa e a ainda vice-governador Elisa Ferreira perante um tema fora da agenda da reunião: a relação do Banco Montepio (BM) com a Associação Mutualista Montepio Geral (AMMG). E fala mesmo num “esquema Ponzi [sic]”. O assunto, evidentemente, de tão delicado que era, fez faísca: Talone sugeriu a interrupção imediata da venda de produtos de subscrição mutualista aos balcões do banco; Elisa Ferreira perguntou se pretendia que “picasse a bolha”.

Um tema fora da agenda

De tão delicado que era o assunto Montepio, que o BdP nunca o submeteu à avaliação dos conselheiros, pelo menos desde Janeiro de 2017, quando o Estado nomeou João Talone, Francisco Murteira Nabo, Francisco Louçã e Luís Nazaré para o representar. Mas na manhã daquela quarta-feira, finalmente, e pela primeira vez, entrou na discussão, mas por impulso de João Talone (Louçã e Nazaré estavam no estrangeiro), que recebeu a ajuda inesperada de João Costa Pinto (ali por inerência, dado presidir à comissão de auditoria do BdP). A reunião contou com mais um protagonista: a vice-governadora. Como sempre acontece nestas reuniões, cabe ao administrador com a tutela da supervisão financeira, à época Elisa Ferreira, comentar a evolução do sistema financeiro. E foi o que se passou.

As dúvidas de João Talone

Só que, desta vez, a meio do discurso, João Talone pediu a palavra. E interpelou directamente Elisa Ferreira e o governador, Carlos Costa, sobre o relacionamento do Banco Montepio com o seu accionista de controlo (com quase 100% do capital), a Associação Mutualista Montepio Geral (AMMG), “por ser uma realidade que se aproximava da do caso BES/GES”. Um dos conselheiros evoca: “Carlos Costa e a Elisa Ferreira manifestaram ambos muita preocupação”.

O que os conselheiros não perceberam foi se, dada a gravidade do assunto, Talone planeara abordar a questão nos termos em que o fez ou se resultou antes de um ímpeto de momento, pois comentou: “O que se está a passar no Montepio assemelha-se a um esquema Ponzi, que se rebentar abrirá um buraco de mais de dois mil milhões de euros.”

E foi quando Carlos Costa e Elisa Ferreira embranqueceram, aflitos – o tema Montepio era um empecilho. E quem terá dado o corpo às balas pelo BdP foi a vice-governadora, explicando que “tinha consciência do problema e que os serviços do BdP tinham vindo a recolher muita informação sobre a matéria”.

Porém, o que João Talone procurava ilustrar era um quadro explosivo (do grupo chefiado por Tomás Correia), a caminhar para um cenário de “ilegalidade” em que o emissor de dívida vende títulos para pagar os encargos da dívida anterior. E dirigindo-se novamente a Elisa Ferreira, questionou-a: “O BdP não deveria suspender de imediato a subscrição de dívida [produtos financeiros] da AMMG vendida aos balcões do banco, que serve para pagar resgates e juros de subscrições anteriores que se estão a vencer?”

Nessa altura, o que alguns conselheiros relatam é que Elisa Ferreira defendeu que era preciso tratar do assunto com pinças. Mas para um ex-vice-governador do BdP, valia a pena aprofundar a questão. E foi quando João Costa Pinto (actual gestor da Fundação Oriente), que “raramente se pronuncia, e quando o faz também nunca sabemos o que é que ele vai dizer, surpreendeu ao intervir para desancar toda a gente”, recorda ao PÚBLICO um dos presentes.

Costa Pinto questiona

A intervenção de Costa Pinto (ex-presidente do BNU e do Grupo Caixa Agrícola) até se revelou mais incisiva, pois acabou a classificar o que se passava na mutualista de “situação escandalosa”. Ao contrário de Talone (ex-administrador do BCP), que exibira números arredondados, apresentou-os ao milímetro. E Costa Pinto clarificou que “as novas subscrições já não vão servir apenas para pagar as anteriores, e evitar rupturas. O programa de colocação de produtos financeiros para 2018, se for completamente cumprido, prevê uma entrada de recursos superior às necessidades estritas do serviço das emissões anteriores. E a dificuldade vai continuar a crescer”.

Com efeito, as dificuldades antecipadas por Costa Pinto acabaram por não se concretizar, porque as subscrições programadas para 2018, de 1,078 mil milhões de euros, ficaram longe do que se viria a verificar-se: apenas 492 milhões. Contas feitas: o saldo foi negativo em 191 milhões, na medida em que os resgates o ano passado foram de 683 milhões (acima do projectado em 655 milhões).

O tema Montepio não desencadeou apenas um longo debate fora da agenda definida para aquele conselho consultivo. Estava igualmente a embaraçar a cúpula do BdP. E desembocou numa troca de impressões acesa entre Talone e Elisa Ferreira, como foi relatado ao PÚBLICO por alguns conselheiros, que viram a vice-governadora agastada: “Vocês pretendem que eu pegue na agulha e pique a bolha?” Leia-se: querem que eu rebente com o grupo? Ao que Talone contrapôs: “Não é preciso picar, basta encostar a agulha.” Traduzindo de novo: ameaçar.

A vice-governadora acabou por interpelar: “Porque é que criticam tanto e não nos ajudam, por exemplo, lendo o código do mutualismo que está em discussão [em 2018] e fazendo contributos?” Talone (à frente do fundo de private equity Magnum Capital) replicou: “Eu nem gosto de mutualistas.” E justificou-se com a experiência na Holanda quando liderou a seguradora Eureko.

“Somos todos bem-educados”

Então, Elisa Ferreira terá evidenciado que fora implementada, por pressão do BdP, entre a AMMG e o Banco Montepio (BM), um sistema de portas estanques, de controlos rígidos, para separar os interesses estritos da actividade bancária dos da AMMG.

Perante a explicação, Talone, que conhece bem a matéria, avançou com um novo argumento de que, “em Inglaterra, o sistema é muito regulado e por mais regulamentos que se façam, se se fixarem objectivos e metas de venda de produtos aos trabalhadores, é impossível evitar o misselling [venda enganosa]”. E reforçou a sugestão: “O tema do Montepio tem de ser resolvido na origem.” Ou seja: acabar com a venda de produtos financeiros (modalidades de capitalização) da mutualista aos balcões do BM.

Outros conselheiros discordavam dele, dadas as ligações históricas existentes entre o banco e a mutualista, e o facto de o banco ter de permanecer como um instrumento da recuperação da AMMG.

Mais do que confusão, o que se sentiu numa parte da reunião, foi tensão, como sublinhou um dos presentes: “Somos todos bem-educados e a conversa decorreu sempre dentro das regras, não me lembro de nenhum momento de exaltação.” Ainda assim, “confirmo que o Talone fez perguntas sobre o Montepio, tema de que o conselho até hoje não voltou a falar”.

Um outro conselheiro deu a seguinte opinião: “Foi pena que o [Francisco] Louçã não tivesse participado, pois ele prepara-se bem e teria contribuído para a discussão, mais até do que o [Luís] Nazaré que faz sempre as perguntas certas mas, às vezes, anda muito ocupado […]. Ambos tentam preservar alguma liberdade de espírito […].” Pelas descrições, percebe-se que Murteira Nabo “não se pronunciou grande coisa”, circulava fora de órbita.

No entanto, no BdP há quem opte por se “fazer de morto”, ficando em silêncio. É que confrontado pelo PÚBLICO sobre que posição tomou enquanto Talone, Costa Pinto e Elisa falavam, um dos conselheiros que falaram com o PÚBLICO, revelou: “Eu? Não disse nada, ouvi com muita atenção e tirei notas.”

Por seu turno, confrontada (por telefone) pelo PÚBLICO, Elisa Ferreira observou que “não faz sentido estar a comentar assuntos de um órgão reservado, onde o diálogo tem de ser franco e aberto, onde se deve estar à vontade para falar”. E acrescentou que “nunca sentiu momentos de tensão e sempre houve troca de impressões franca e aberta”. E opinou: “Não vejo onde está a notícia.”

Mas entende-se por que razão Talone introduziu o tema na discussão. A missão dos membros do conselho nomeados pelo Governo é proteger os interesses do Estado, o que passa por assegurar a estabilidade do sistema financeiro, logo, garantir a solvabilidade do grupo Montepio, que gere poupanças e reformas futuras de parte substancial dos mais de 600 mil associados (os que subscreveram, por exemplo, produtos financeiros aos balcões da CEMG, agora BM, que desde 2010 acumula prejuízos com destruição de capital mutualista).

Naquela quarta-feira, 28 de Março de 2018, o tema Montepio ia constar do cardápio dos órgãos de comunicação social. Ao final da tarde, os associados da mutualista iam juntar-se em assembleia geral para aprovar as contas de 2017. E já era do conhecimento público que, para evitar ter de assumir uma situação líquida negativa, o Estado concordara em dar à AMMG um crédito fiscal de 805 milhões de euros, o impacto da medida só seria sentido a posteriori (quando os lucros futuros ficarem sujeitos a pagamento de impostos, dado que até ali estavam isentos).

Actas e minutas

Assim que terminou o conselho consultivo, o vice-governador Luís Máximo dos Santos encaminhou-se para Talone, que estava acompanhado de outro conselheiro, para lhe transmitir: “Fez muito bem em tocar no assunto [Montepio].”

Por via das dúvidas, Elisa Ferreira foi também ter com Talone, e com Carlos Costa a assistir, sugeriu-lhe: “Por que é que não dá uma palavrinha ao ministro das Finanças sobre o que aqui disse?” O gestor de fundos não se considerava pombo-correio e clarificou que o faria, sim, mas com a condição de o BdP incluir a matéria sensível na acta da reunião, apesar de não constar da agenda. Na qualidade de secretário-geral do BdP, José Queiró participava no conselho e tirava apontamentos.

Acontece o seguinte: quando Francisco Louçã chegou em 2017 ao BdP verificou que o conselho consultivo, um órgão de gestão formal, não produzia actas, e propôs que passasse a tê-las. Perante as resistências levantadas ao mais alto nível, o economista apenas conseguiu que se escrevessem minutas, com menção às presenças e à agenda oficial da reunião.

E quando a minuta do conselho consultivo de 28 de Março de 2018 chegou a Talone, este constatou que o BdP mantinha o ritual de negação que frequentemente encarna, pois no documento o tema Montepio foi suprimido.

Interrogado pelo PÚBLICO sobre o teor do conselho consultivo de 28 de Março de 2018, onde associou o Montepio a um “esquema Ponzi”, João Talone mostrou-se surpreendido, ficou em silêncio a ouvir as questões. Não as desmentiu, nem as confirmou, e deu por encerrada a conversa: “Não posso comentar esses assuntos.”

Por seu turno, também interrogado sobre a mesma matéria, João Costa Pinto também não desmentiu, nem confirmou: “Deve compreender que não posso falar, estou obrigado a sigilo, e já nem faço parte do conselho”. Aquele aliás foi último conselho consultivo em que João Costa Pinto participou, tendo entretanto assumido funções como membro do conselho geral da AMMG desde Março deste ano, pela lista de Ribeiro Mendes, adversário de Tomás Correia.

Na sala onde o conselho consultivo se reuniu, a 28 de Março de 2018, apresentaram-se o governador (Carlos Costa) e os dois vice-governadores (Elisa Ferreira e Máximo dos Santos), a administradora Ana Paula Serra, o presidente da comissão de auditoria (Costa Pinto), os anteriores governadores António Sousa e Tavares Moreira (Vítor Constâncio estava no BCE), a presidente do IGCP – Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, Cristina Casalinho, o delegado do governo dos Açores, Roberto Amaral, o presidente da Associação Portuguesa de Bancos (APB), Fernando Faria de Oliveira, e ainda João Talone e Murteira Nabo.

O retrato da reunião fica fechado com José Queiró (ex-responsável pelo Departamento de Serviços Jurídicos), o secretário-geral que regista o que se passa, e com Helena Adegas, directora do BdP, que ali está para clarificar as dúvidas, entre outros.

A troca de opiniões acesa entre conselheiros e a cúpula do BdP poderá, afinal, ter tido desenvolvimentos. É que no dia 19 de Abril de 2018, em entrevista ao Negócios, o ministro das Finanças, Mário Centeno, prestou estas declarações: “Se a Associação Mutualista Montepio precisar, o Governo ‘deve estar disponível’ para a ajudar”.

Ano e meio depois, a expectativa seria que as autoridades tivessem, entretanto, enfrentado a realidade. Pelo menos, ao nível da governação do grupo Montepio, a instabilidade continua destacada na agenda mediática. A próxima reunião do conselho consultivo do BdP está marcada para a segunda quinzena de Novembro.

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